As propostas locais para reduzir os danos de energias renováveis
Mariana Vick
31 de janeiro de 2024(atualizado 31/01/2024 às 17h01)Documento lista 100 medidas que podem mitigar impactos sociais e ambientais dos setores eólico e solar no Brasil. Iniciativa é de comunidades tradicionais e organizações do Nordeste
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Turbina eólica na costa de Fortaleza, no Ceará
Organizações da sociedade civil, grupos de pesquisa e comunidades tradicionais afetadas pela geração de energia eólica e solar no Nordeste, como indígenas, quilombolas e camponeses, lançam nesta quarta-feira (31) um documento com recomendações para reduzir os impactos sociais e ambientais do setor no Brasil.
Trata-se de uma iniciativa inédita. Chamado “Salvaguardas socioambientais para energia renovável”, o texto lista 100 medidas legais, administrativas e políticas que podem ajudar o país a enfrentar as contradições da implantação de parques eólicos e solares. Apesar de promoverem a geração de energia limpa, os empreendimentos têm registrado danos na biodiversidade e nos modos de vida tradicionais em partes do Brasil.
Neste texto, o Nexo explica o que são a energia eólica e solar, quais são os problemas registrados na construção desses parques no Brasil e quais são as principais recomendações das comunidades afetadas para resolvê-los. Mostra também como o relatório foi feito e como os setores público e privado podem aproveitá-lo.
A energia eólica é a energia elétrica gerada pela força dos ventos, num processo que transforma a energia cinética do ar em movimento em eletricidade. Essa transformação ocorre por meio de turbinas eólicas, que em conjunto formam os chamados parques eólicos. Já a energia solar é a energia elétrica ou térmica gerada com o uso do sol, por meio de painéis fotovoltaicos e aquecedores solares.
Ambas as energias são renováveis (pois utilizam recursos inesgotáveis, o vento e a luz) e limpas (pois não emitem gases de efeito estufa). Essas características as tornam alternativas para a descarbonização da matriz energética no contexto da mudança climática. Apesar de ainda incipientes, elas têm crescido no Brasil, com destaque para o Nordeste.
Ao mesmo tempo que traz benefícios, a instalação de usinas eólicas e solares causa danos. As construções podem acentuar disputas por terra, afetar comunidades vizinhas e degradar a biodiversidade local. Problemas como o desmatamento, o uso intensivo de água, o descarte de resíduos e a extinção de espécies têm acompanhado projetos desse tipo no Brasil.
A publicação lançada nesta quarta (31) propõe diferentes mecanismos de proteção contra os impactos de empreendimentos renováveis no país. As propostas buscam tanto corrigir danos de projetos que já existem quanto prevenir novos. As ideias partem das comunidades afetadas, com a contribuição de organizações parceiras da iniciativa.
A principal fonte de conflitos aos quais o documento faz referência é o uso da terra. É preciso uma grande área para construir usinas eólicas e solares. Essa necessidade costuma empurrar os empreendimentos para lugares com presença de vegetação nativa, geralmente próximos ou sobrepostos a territórios onde vivem comunidades tradicionais.
“[…] o planejamento e a decisão de onde [a usina] será colocada não leva em conta o que existe naquele território. O máximo que é levado em consideração hoje é a existência ou não de áreas protegidas ou outras áreas já demarcadas. Tem uma série de populações e povos tradicionais, campesinos de diferentes configurações, que não são considerados”
Cristina Amorim
coordenadora do Plano Nordeste Potência, iniciativa formada por organizações que elaboraram o relatório, em entrevista ao Nexo
Para evitar esse tipo de situação, o documento defende mudanças em políticas públicas e na orientação da política energética do país. Além do potencial eólico ou solar de um local, os tomadores de decisão devem analisar outras variáveis para definir quais territórios devem receber empreendimentos, por exemplo. Esses projetos não podem mais impossibilitar “o uso da terra para produção de alimentos e água, conservação ambiental e manutenção dos territórios, culturas e modos de vida”.
Quais as principais propostas
Zonas de exclusão
Para as comunidades, o planejamento energético deve prever as chamadas zonas de exclusão, onde empreendimentos não devem ser instalados. Esses espaços devem ser definidos a partir de diálogos com as comunidades locais e de premissas ambientais como a da precaução e a da prevenção.
Políticas ambientais
Onde há grande potencial energético, o Estado deve priorizar a regularização dos territórios tradicionais (que nem sempre estão demarcados), estruturar órgãos ambientais, buscar resolver conflitos agrários e planejar o uso sustentável dos espaços, segundo o documento. Outra recomendação é estimular a participação popular nas decisões.
Iniciativa privada
Para financiar o trabalho extra de política ambiental, a iniciativa privada deve criar e alimentar um fundo setorial criado para essa finalidade, segundo a publicação. O texto também diz que, “acima de tudo, [o setor] deve cumprir ou implementar voluntariamente melhores práticas sociais e ambientais”. Esse trabalho não cabe apenas ao poder público, na avaliação das comunidades.
Escuta às comunidades
Outra recomendação do documento se refere à chamada Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho). O tratado internacional, do qual o Brasil faz parte, estabelece que empreendimentos devem ser realizados apenas após a consulta prévia, livre e informada de populações indígenas que podem ser potencialmente afetadas por sua implementação. A publicação defende o cumprimento fiel do texto.
Contratos
Os contratos para a instalação de empreendimentos de energia renovável têm sido marcados por cláusulas desvantajosas para as comunidades, segundo o documento. O texto diz que é preciso mais transparência na relação contratual, garantia de autonomia sobre o uso dos territórios e participação das populações locais nos resultados do aproveitamento do potencial energético local.
Licenciamento ambiental
Para as comunidades, o processo atual de licenciamento ambiental tem sido insuficiente para mitigar os impactos e danos do avanço das renováveis. Medidas possíveis para melhorar esse processo são a adoção de avaliações de impactos cumulativos dos empreendimentos e a admissão da cartografia social (mapas feitos em parcerias com as comunidades). O documento também propõe a obrigatoriedade de estudos de impactos da poluição sonora, luminosa, particulada e visual, e das sombras provocadas pelas torres eólicas.
A publicação afirma que “o Brasil tem condições de dar uma imensa contribuição para a descarbonização mundial. Mas isso não pode ser feito às custas de povos e de populações historicamente exploradas, marginalizadas e vulnerabilizadas”. “Se for somente energética, essa transição dificilmente tornará a vida melhor”, acrescenta.
Para as comunidades que assinam o texto, é importante revelar os impactos negativos que geralmente ficam ocultos sob o rótulo de “energia limpa”. Com a provocação, o grupo busca incentivar o debate sobre energia a ir além das demandas por fontes que não emitam poluentes. O modelo de geração energética deve ser “justo, popular e inclusivo”, na sua avaliação.
Usina solar de Pirapora, Minas Gerais
“A política energética brasileira sempre foi pautada pela capacidade de geração de energia”, disse ao Nexo Cristina Amorim, coordenadora do Plano Nordeste Potência, iniciativa formada por organizações que elaboraram o relatório. Para ela, o setor precisa passar a incluir outras questões. Fatores socioambientais foram considerados em alguns projetos nos últimos anos, mas as políticas atuais estão longe de serem suficientes, segundo ela.
Amorim classificou os territórios que abrigam os parques eólicos e solares como zonas de sacrifício. Segundo o documento desta quarta (31), a expressão é utilizada para “designar locais/áreas que passam por grandes perdas sociais e ambientais para beneficiar empreendimentos que supostamente beneficiam o coletivo, embora isso nem sempre seja verdade”. “Não podemos mais considerar que essas zonas sejam aceitas em pleno século 21”, de acordo com a ambientalista.
Trinta organizações da sociedade civil e comunidades afetadas pela produção de energias renováveis no Nordeste participaram da elaboração do documento. Além das já citadas, estão entre elas a Apoinme (Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo), a Comissão Pastoral da Terra e o Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos). Pesquisadores de universidades como a UFBA (Universidade Federal da Bahia) também assinam o texto.
O processo de elaboração do documento começou em 2022. Depois de formações, estudos e discussões online e presenciais, o grupo responsável pelo relatório estabeleceu as recomendações lançadas nesta quarta (31). O tempo desde a ideia até a publicação do texto também se estendeu pela necessidade de mapear pessoas atingidas.
Parque Eólico de Aratuá, no Rio Grande do Norte
O documento diz que as salvaguardas não são direcionadas a apenas uma instituição ou setor. “Essas medidas devem ser adotadas por gestores públicos, órgãos reguladores e as empresas de energia eólica (e solar) como forma de promover uma transição energética mais justa e menos agressiva aos direitos dos povos e da natureza”, disse ao Nexo Maria Rosa Almeida Alves, professora e integrante do Movimento Salve as Serras, da Bahia. O setor financeiro também pode adotá-las como condição para patrocinar novos empreendimentos.
Todas as recomendações se referem à energia eólica onshore (na terra), segundo o documento. “Os temas das eólicas no mar (offshore), hidrogênio verde e algumas especificidades das usinas solares centralizadas ainda estão em discussão, e é necessário mais aprofundamento para chegar a recomendações concretas”, diz o texto. Para as comunidades, no entanto, esses temas também são urgentes.
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