Expresso

‘Cidades provisórias’: de onde vem o projeto pensado no RS

Mariana Vick

18 de maio de 2024(atualizado 23/05/2024 às 14h28)

Instalações temporárias para desabrigados serão construídas em Porto Alegre, Canoas, Guaíba e São Leopoldo. Iniciativa se inspira em municípios atingidos por desastres no passado 

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FOTO: Adriano Machado/Reuters - 15.mai.2024Homem negro, jovem, de touca e roupas de frio, olha para a câmera, sério. Atrás dele há diversos colchões no chão, em um espaço amplo.

Imigrante haitiano posa para foto em abrigo em Porto Alegre (RS)

O governo do Rio Grande do Sul anunciou oficialmente na quinta-feira  (16) a construção de “cidades provisórias” para atender a desabrigados pelas inundações que atingem o estado desde o fim de abril. Os quatro espaços serão construídos em Porto Alegre, Canoas, Guaíba e São Leopoldo. A informação foi dada pelo vice-governador Gabriel Souza (MDB) à Rádio Gaúcha.

A proposta vinha sendo levantada desde antes pela gestão de Eduardo Leite (PSDB) e também pela prefeitura de Porto Alegre. A construção de novos espaços responde à necessidade de retomada das atividades originais dos lugares que hoje estão servindo de abrigo (como escolas). O projeto das autoridades, no entanto, tem recebido críticas.

Neste texto, o Nexo explica o que é o projeto do governo gaúcho, quais são os precedentes desse tipo de experiência, quais são as críticas à proposta e o que dizem as autoridades. Mostra também qual é a situação dos abrigos atuais no Rio Grande do Sul, além dos desafios para a gestão desses espaços. 

O que são as ‘cidades provisórias’

As “cidades provisórias” serão abrigos qualificados nos quais as pessoas irão ficar até terem acesso a políticas habitacionais, segundo Souza. A intenção é construir estruturas temporárias com dormitórios individuais (o que não há hoje em todos os abrigos emergenciais), áreas comunitárias (como banheiros, cozinha e lavanderia) e espaços para crianças e animais de estimação. Os locais escolhidos para o projeto foram:

  • o chamado Porto Seco, em Porto Alegre
  • o Centro Olímpico Municipal, em Canoas
  • o Parque de Eventos, em São Leopoldo
  • a cidade de Guaíba, em local ainda a ser definido

Os municípios que irão receber as “cidades provisórias” reúnem juntos 67% da população desabrigada do Rio Grande do Sul, que na quinta (16) somava 77 mil pessoas. O governo do estado afirma, com base em dados de outros desastres, que a maior parte de quem está hoje em abrigos não vai precisar da nova estrutura. A estimativa é que cerca de 15% do grupo atual irá para esses locais.

“As pessoas ou vão voltando para casa ou vão pegando políticas como aluguel social dos governos, vão para casa de amigos, vão se virando, ou por conta do governo, ou por conta própria. Mas vai sobrar um saldo de pessoas que, infelizmente, não têm para onde ir e são obrigadas a ficar naquela condição” 

Gabriel Souza

vice-governador do Rio Grande do Sul, em entrevista à agência Reuters

4 a 6

semanas é o tempo previsto para que a população use as estruturas provisórias, segundo o governo estadual 

A prefeitura de Porto Alegre havia sugerido uma proposta de “cidade provisória” antes da apresentação do governo do estado. Segundo o projeto da gestão de Sebastião Melo (MDB), as novas estruturas, além de espaços para as famílias, receberiam escolas e mercados. Integrantes do governo municipal também defendem a aplicação de uma GLO (Garantia da Lei e da Ordem) para a segurança dos complexos, mas a administração estadual resiste à medida.

FOTO: Diego Vara/Reuters 09.05.2024Vista aérea mostra casas alagadas no bairro Mathias Velho, em Canoas (RS). Se enxerga apenas o telhado e a copa das árvores em meio da água e da lama

Casas alagadas no bairro Mathias Velho, em Canoas (RS)

As “cidades provisórias” terão apoio da Organização Internacional para as Migrações e do Acnur (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados), segundo o governo estadual. Souza disse na sexta (17) que elas começariam a funcionar em até 20 dias. Empresas serão contratadas ainda nesta semana para montar os espaços, de acordo com informações oficiais.

O que inspirou o projeto

A expressão “cidade provisória” não é comum nos documentos e estudos sobre desastres. Essas publicações costumam falar em diferentes categorias de abrigos e habitações. “Abrigo temporário” (nome dado para abrigos de curto prazo) talvez seja a expressão mais precisa para o projeto do Rio Grande do Sul, cujo uso se limitará a poucas semanas, segundo a administração estadual.

A prefeitura de Porto Alegre diz que se inspirou em tragédias como a ocorrida nas cidades serranas do Rio de Janeiro em 2011 para pensar na proposta. Trinta e cinco mil pessoas ficaram desabrigadas no episódio de 13 anos atrás, considerado o maior desastre natural da história do Brasil. Abrigos como o montado em São José do Vale do Rio Preto tiveram ampla infraestrutura, incluindo:

  • barracas Shelter Box, próprias para desastres, para cada família
  • áreas de convívio e uso comum (como cozinhas e lavanderias)
  • ambientes de almoxarifado, refeitório, creche, parque, etc
  • iluminação entre as barracas, montadas num estádio da cidade

A experiência na região foi ambígua. Estudo publicado em 2017 na revista Saúde em Debate mostrou que o abrigo provisório em São José do Vale do Rio Preto teve pontos positivos, como o alívio da necessidade de alojamento e a liberação de prédios públicos que haviam sido destinados aos desabrigados no primeiro momento da emergência. Por outro lado, as barracas, importadas, eram pré-fabricadas e não adaptáveis a climas ou culturas específicas, o que limitou a identificação da comunidade com o espaço.

25 m²

era o tamanho das barracas usadas na cidade, com capacidade para até 10 pessoas; modelo foi o mesmo usado em desastres como o terremoto que devastou o Haiti em 2010 

Outras experiências tiveram resultados piores. Estudo publicado em 2011 por pesquisadores da UFSCar (Universidade Federal de São Paulo) a pedido do Conselho Federal de Psicologia mostrou uma série de problemas em abrigos temporários de cidades como Ilhota (SC), atingida por um desastre em 2008, e União dos Palmares (AL), em 2010. As adversidades incluíam:

  • insalubridade diante do clima (calor, frio, chuva) 
  • ausência de condições para devida higienização do espaço
  • falta de serviços básicos
  • exposição pública levada ao extremo (em áreas como banheiros)
  • falta de assistência médica 
  • deterioração na convivência social
  • desativação de abrigos sem outra opção habitacional definitiva

Quais são as críticas ao projeto

A proposta de criar “cidades provisórias” no Rio Grande do Sul recebeu críticas de parlamentares gaúchos. Laura Sito, deputada federal do PT, afirmou em postagem no Instagram que o projeto será um “depósito para desabrigados” que irá “jogar a população mais pobre a condições indignas”. Já a vereadora de Porto Alegre Karen Santos, do PSOL, disse que o Porto Seco, local escolhido para abrigo, não tem estrutura para essa função.

“Porto Alegre tem centenas de áreas ociosas, as pessoas não podem sair de abrigos para serem jogadas em barracas. Precisam de moradia provisória, mas com dignidade. É desumano fazer o jogo da especulação imobiliária em meio a uma tragédia”

Laura Sito

deputada estadual pelo PT no Rio Grande do Sul, em post no Instagram na quarta-feira (15) 

“O Complexo cultural Porto Seco não é um espaço ocioso, historicamente abandonado pelos poderes públicos, [que] foi ressignificado com a presença do carnaval. É momento de nos perguntarmos que cidade queremos. Mais segregação e crise?” 

Karen Santos

vereadora pelo PSOL em Porto Alegre, em post no Instagram na terça-feira (14) 

Urbanistas e pesquisadores que estudam desastres também criticaram a proposta. Betânia Alfonsin, pesquisadora do Observatório das Metrópoles e diretora de Relações Internacionais do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico, disse ao Nexo que o Porto Seco, em Porto Alegre, está a dezenas de quilômetros de distância do local de origem das famílias desabrigadas. Além disso, é inadequado acomodar as pessoas em barracas às vésperas do inverno:

“É uma proposta que está longe de ser uma cidade. Ela não traduz essa facilidade aos bens materiais e simbólicos que traduzem a ideia de cidade. Não tem a infraestrutura, os serviços, a moradia adequada. Está mais próxima de um campo de refugiados do que de uma cidade — principalmente quando chamamos atenção de que o prefeito Sebastião Melo sugeriu que isso viesse com uma GLO, como se houvesse ali periculosidade e ilegalismos”

Betânia Alfonsin

pesquisadora do Observatório das Metrópoles e diretora de Relações Internacionais do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico, em entrevista ao Nexo

Norma Valencio, professora na UFSCar (Universidade Federal de São Carlos) e vice-coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas Sociais em Desastres, concorda. Para ela, o projeto é contestável. A proposta dos governos foi “concebida e implantada sem qualquer consulta prévia, sem participação cidadã no processo de planejamento, provavelmente sem respeito à diversidade do habitar e ser-no-mundo”, disse ao Nexo.

FOTO: Diego Vara/Reuters - 10.mai.2024

Voluntário carrega homem resgatado em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul

Alfonsin disse que, entre os Censos de 2010 e 2022 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), houve um incremento de mais de 100% do número de imóveis vazios de Porto Alegre. O maior estoque está no centro da cidade, onde 21% das unidades estão vazias, segundo ela. “Por que deslocar populações de maneira violenta, com violações de direitos fundamentais, para a periferia, quando é muito mais indicado, numa perspectiva ética, política, jurídica e técnica, quitar esse estoque já construído no interior da cidade?”, disse.

O que diz quem os defende

Sebastião Melo, prefeito de Porto Alegre, afirmou na quarta (15) ao jornal Folha de S.Paulo que, diferentemente do que dizem os críticos, a cidade não tem imóveis disponíveis para tantos desabrigados. Para ele, o número de pessoas que precisarão de uma nova habitação irá aumentar, pois há quem não esteja em abrigos (mas nas casas de amigos ou parentes) que logo surgirá com essa demanda. Ele disse estar levantando prédios públicos que possam servir para acolhimento provisório.

Já o governo do Rio Grande do Sul diz que, além de construir as “cidades provisórias”, a administração irá colocar pessoas em aluguel social onde houver imóveis disponíveis. A segunda etapa de medidas será encontrar moradia definitiva para os desabrigados. Esse trabalho deve contar com o apoio do governo federal, que na quarta (15) anunciou o pagamento de R$ 5.100 a famílias afetadas pelas enchentes e a oferta de residências pelo programa Minha Casa, Minha Vida.

FOTO: Diego Vara/Reuters 15.05.2024Homens dirigem botes em rua alagada de Porto Alegre (RS)

Homens dirigem botes em rua alagada de Porto Alegre (RS)

Muitos dos abrigos atuais, apesar da solidariedade presente, não foram projetados para acomodar tantas pessoas de forma prolongadas”, disse o gabinete do vice-governador em nota ao Nexo, via assessoria de imprensa. São na verdade alojamentos provisórios. Em vários casos, faltam banheiros e chuveiros suficientes, cozinhas adequadas, espaços para as crianças brincarem e locais apropriados para abrigar animais de estimação. As cidades temporárias são planejadas para superar essas deficiências, proporcionando uma infraestrutura mais adequada e digna para as famílias afetadas.” O texto nega a acusação de segregação, dizendo que as esturutras temporárias serão localizadas “em áreas com acesso a serviços públicos essenciais, como educação, saúde e transporte”.

Atualmente, o Rio Grande Sul tem quase 80 mil pessoas em abrigos que não têm estrutura adequada para abrigá-las por longos períodos. Se nada for feito, elas poderão permanecer nesses abrigos até que suas moradias definitivas estejam prontas. A proposta das cidades provisórias buscar oferecer uma estrutura temporária com melhores condições, localizada em áreas com acesso a serviços públicos essenciais, como educação, saúde e transporte. Uma ação que busca garantir que as pessoas tenham acesso a uma qualidade de vida digna durante o período de transição

Celso Aparecido Sampaio, arquiteto e professor doutor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie, disse considerar positiva a construção das “cidades provisórias” para os gaúchos. “Elas são boas, porque atendem às famílias. [A situação] é como a da covid-19, quando precisamos construir hospitais da noite da noite para o dia”, disse ao Nexo. Para ele, é preciso tomar cuidado para que as críticas não reforcem estigmas:

“[O projeto de abrigo] não se trata de uma cidade. [O governo] tem falado em criar espaços coletivos, mas isso realmente se trata de um acampamento. Mas a questão da nomenclatura é relativa. O que nós precisamos é de construções com conforto, com controle térmico, com área para abrigar as famílias atendidas. Há uma pré-concepção sobre a ideia de acampamento como negativa, e é importante não criar estigma”

Celso Aparecido Sampaio

arquiteto e professor doutor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie, em entrevista ao Nexo 

“Temos que cobrar qualidade desses espaços, para que as pessoas possam viver bem. Ao valorizar isso, valorizamos também a estima das pessoas, que precisam de muito acolhimento”, afirmou. Ao mesmo tempo, ele defende um macroplanejamento para que, em paralelo, o Rio Grande do Sul já pense em um plano de infraestrutura para se reconstruir.

Qual a situação dos abrigos atuais

Dados parciais de um censo sobre as vítimas das inundações no Rio Grande do Sul divulgados na quinta (16) pelo governo do estado mostram 9.308 famílias em alojamentos, dos quais 10.521 são crianças e adolescentes, 5.989 são idosos e 1.449 são pessoas com deficiência. Os números reais certamente são maiores, já que o questionário foi aplicado em apenas 60% dos abrigos.

41,3% 

dos alojamentos estão abrigando gestantes ou puérperas

40,1%

têm migrantes

3,9%

têm população quilombola ou indígena 

Os abrigos mapeados não são as cidades provisórias prometidas pelo governo, mas abrigos emergenciais, montados no primeiro momento após as enchentes. A gestão desses espaços tem trazido desafios. Problemas de convivência e mesmo crimes (como o de violência sexual) foram registrados desde o início das chuvas, o que levou à criação de alojamentos exclusivos para certos grupos (como mulheres e crianças).

FOTO: Adriano Machado/REUTERS - 11.05.2024Homem ajuda a limpar área destruída pelas chuvas em Muçum, no Rio Grande do Sul

Homem ajuda a limpar área destruída pelas chuvas em Muçum, no Rio Grande do Sul

Valencio afirmou que não há precedentes de seu conhecimento de abrigos no Brasil como os do Rio Grande do Sul. “Os números são impressionantes, embora, no concernente à multidimensionalidade do sofrimento humano, não são as escalas demográficas ou territoriais as que mais importam, senão aquilo que”, na sua rede de relações, foi “irreversivelmente perturbado”. Para ela, os abrigos guardam uma ambiguidade:

“[Os abrigos] são ofertados como um substitutivo espacial precário, sob a gestão pública, diante da perda — permanente ou temporária — do espaço privado de habitação de famílias afetadas pelos desastres. Ali, congrega vários tipos de famílias […]. Ou seja, o abrigo impõe à estrutura e dinâmica da vida privada a autoridade do poder público, com suas próprias normas de conduta, valores, preferências e afins”

Norma Valencio

professora na UFSCar (Universidade Federal de São Carlos) e vice-coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas Sociais em Desastres, em entrevista ao Nexo 

Para ela, muito já está sendo feito no Rio Grande do Sul e “boa vontade não falta nesta fase de crise aguda” — apesar de problemas como a presença de terceiros, sem capacitação prévia, que em alguns casos têm tomado para si atribuições de autoridade. Não há “receita” para a gestão desses espaços, segundo ela. “O essencial, me parece, é se dispor a exercitar […] uma gestão participativa e verdadeiramente disposta a uma escuta ativa, qualificada e humanizada da pessoa que ali expõe, nos seus próprios termos, aquilo de que carece para restituir a sua dignidade naquele espaço confinado de convivência de curto e médio prazos”, disse.

ESTAVA ERRADO: A primeira versão deste texto dizia que um abrigo havia sido montado em São José do Rio Preto (SP) após o desastre registrado na região serrana do Rio em 2011. Na verdade, o abrigo foi montado em São José do Vale do Rio Preto (RJ). O texto foi corrigido às 14h28 de 23 de maio de 2024.

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