Expresso

A teoria sobre o papel das savanas na evolução humana 

Mariana Vick

16 de novembro de 2024(atualizado 17/11/2024 às 22h40)

Bioma africano pode ter tido papel crucial na conformação de nossa espécie há milhões de anos, segundo hipótese popular na ciência. Parte dos pesquisadores, no entanto, a contesta, apontando lacunas

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FOTO: Radu Sigheti/Reuters - 24.abr.2005Homem negro, jovem, está em pé, em meio a árvores e plantas de porte mais baixo.

Homem em Tsavo East, maior parque nacional do Quênia

Dados do sistema Prodes, do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), divulgados neste mês mostram que o desmatamento no Cerrado caiu pela primeira vez em cinco anos entre agosto de 2023 e julho de 2024. A queda foi de 25,7% em relação ao mesmo período anterior. A área derrubada, de 8.174 km² de vegetação nativa, porém, ainda está elevada.

O Cerrado é o principal exemplar de uma savana no Brasil. Conhecidos por seu equivalente africano, esses biomas são fundamentais para a regulação do clima e importantes berços de biodiversidade. Nem todos sabem, no entanto, que sua importância não vem de hoje: de acordo com uma das teorias mais famosas da evolução humana, as savanas podem ter tido papel crucial na conformação de nossa espécie.

Neste texto, o Nexo explica o que há na teoria conhecida como hipótese da savana, que associa a evolução humana à presença de nossos ancestrais no bioma africano há milhões de anos. Mostra também quais eventos marcaram nossa história evolutiva e quais são as lacunas e incertezas da teoria.

O que marcou a evolução humana

Os humanos são primatas. A linhagem dos hominíneos, subfamília que contém as espécies mais estreitamente relacionadas com o Homo sapiens, originou-se provavelmente há cerca de 5 milhões de anos. A evolução dos hominíneos foi marcada pela ocorrência de quatro tipos principais de mudanças: 

  • o aumento do cérebro em relação a outros primatas
  • o bipedalismo, ou a locomoção ereta sobre duas pernas
  • mudanças nas mandíbulas e nos dentes
  • mudanças no comportamento social e cultural 

Os fósseis mais antigos aceitos da linhagem dos hominíneos têm cerca de 4,4 milhões de anos. Eles são classificados em duas espécies anteriores ao Homo sapiens: Australopithecus anamensis e A. afarensis. O A. afarensis é o mais conhecido dois dois, por incluir o fóssil chamado Lucy, que ficou famoso por ser excepcionalmente completo. 

A maior parte e talvez toda a evolução humana ocorreu na África. De acordo com os registros fósseis, o primeiro evento importante de nossa constituição foi o bipedalismo, há mais de 3 milhões de anos. Mais tarde, vieram as mudanças nas mandíbulas e no tamanho do cérebro, que provavelmente culminaram no primeiro indivíduo do gênero Homo

Os fósseis classificados como Homo surgiram há cerca de 2 milhões de anos ou mais, incluindo espécies como Homo habilis e Homo erectus. Os humanos que existem hoje — os Homo sapiens — são os chamados humanos anatomicamente modernos. Estima-se que a espécie atual tenha surgido um pouco antes de 100 mil anos atrás. 

30 a 40 mil

anos atrás foi o período em que os humanos anatomicamente modernos já estavam totalmente estabelecidos na África, Europa e Ásia

Onde estavam as savanas nesse período

As savanas são, para a maioria dos autores, um bioma marcado pela presença de plantas herbáceas (de pequeno porte), mas que também conta com estratos arbustivos e arbóreos. São predominantes na zona tropical da Terra, por onde se distribuem climas com alternância entre uma estação seca e outra chuvosa. Estão em países da América do Sul, África, Ásia e Oceania.

FOTO: Jim Urquhart/Reuters - 06.dez.2019Chita fêmea, adulta, está ao lado de vários filhotes. Eles estão em uma área aberta, com plantas de pequeno porte.

Chita fêmea e sete filhotes na savana do Parque Nacional Maasai Mara, no Quênia

A definição de savana varia entre os autores, de acordo com material publicado pelo IB-USP (Instituto de Biologia da Universidade de São Paulo). Para muitos pesquisadores da África, por exemplo, a savana inclui diversos tipos de vegetação, como florestas tropicais, savanas úmidas, savanas secas etc. A maioria, no entanto, adota uma ideia mais restrita.

A savana mais conhecida é a savana africana, continente onde surgiram os primeiros hominíneos. A savana atual tem cerca de 5 milhões de km² de extensão e vai desde os entornos do Deserto do Saara até os entornos do Deserto de Kalahari, ao norte da África do Sul. A origem do bioma, estimada em cerca de 5 milhões de anos atrás, ainda é objeto de discussão entre cientistas.

De que forma elas teriam influenciado nossa evolução

A hipótese da savana é uma teoria que propõe que as grandes modificações na evolução humana podem ter ocorrido depois que os ancestrais do Homo sapiens se mudaram das florestas para esses habitats. A principal dessas modificações teria sido o bipedalismo. “A falta de árvores desse ambiente teria estimulado nossos ancestrais a descer das árvores para o chão”, disse ao Nexo Maria Mercedes Martinez Okumura, professora e coordenadora do Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos do IB-USP.

A bipedia ou o bipedalismo facilita a locomoção e a visão em grandes áreas abertas. Também permite o uso das mãos para outras atividades. A aquisição dessa característica permitiu aos primeiros humanos sobreviverem após eventos que teriam tornado o clima da Terra mais seco, transformando áreas de floresta em savanas, segundo a teoria. 

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A maioria dos grandes macacos modernos, como os orangotangos e os chimpanzés — ambos parentes dos hominíneos —, vive um estilo de vida arbóreo, locomovendo-se pelas árvores. Era dessa forma que nossos ancestrais viviam antes do surgimento do bipedalismo. A partir de certo ponto, porém, os hominíneos evoluíram de maneira diferente, adquirindo as características que se tornariam nossa atual forma de locomoção.

“A bipedia é a forma de locomoção característica de humanos e seus ancestrais, que andam usando as duas pernas. De fato, para ser considerado um hominíneo (ou seja, membro de nossa árvore evolutiva humana, a partir da divisão de linhagens humana e chimpanzé), é necessário que a espécie fóssil apresente características anatômicas indicativas de alguma bipedia”

Maria Mercedes Martinez Okumura

professora e coordenadora do Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos do IB-USP, em entrevista ao Nexo 

“A bipedia não surgiu com as mesmas características que observamos  na bipedia de humanos atuais”, disse Okumura. “Humanos atuais e demais espécies do gênero Homo são bípedes obrigatórios (ou seja, a bipedia é a única forma de locomoção que é energeticamente viável), ao passo que ancestrais mais antigos (do gênero Australopithecus) teriam bipedia habitual (parte do tempo nas árvores e parte do tempo no chão)”, completou.

O que mudou com o bipedalismo

O bipedalismo é considerado um marco da evolução humana. A forma com que nos locomovemos é diferente da de qualquer outro animal na Terra. Diversos primatas podem levantar e andar por períodos curtos de tempo, mas apenas humanos usam essa postura como modo principal de locomoção. 

Adotando esse modo de deslocar, os ancestrais do Homo sapiens liberaram as mãos para outras tarefas que não a locomoção. Essa mudança levou “ao aparecimento de um modo distintamente humano de vida, que incluía a produção de ferramentas”, segundo material publicado pela Unesp (Universidade Estadual Paulista). Outras transformações são associadas às mãos livres:

  • aumento da capacidade de caça
  • aumento da capacidade de alcançar alimentos altos, como frutas
  • aumento da capacidade de proteção contra predadores
  • possibilidade de carregar filhos nos braços

Diversas modificações anatômicas humanas atuais em áreas como a coluna, a estrutura pélvica e os pés estão associadas ao bipedalismo. Até mesmo a ausência de pelos (em comparação com outros primatas) pode ter tido relação com o andar bípede no passado. A combinação de pele desnuda e níveis altos de transpiração nos ajuda a regular a temperatura, permitindo o esforço físico do andar ereto, segundo o material da Unesp.

A bipedia não é hoje a característica mais distintiva dos humanos, mas o cérebro. “Ele nos dá cultura e linguagem – e todas essas coisas que nos fazem diferenciados como espécie”, disse a paleoantropóloga Carol Ward à revista Sapiens. O aumento do cérebro humano, porém, é mais recente que a bipedia; antes dele, foi ela o grande diferencial de nossa evolução, segundo a pesquisadora.

2 milhões

de anos atrás foi quando o cérebro humano começou a aumentar; bipedalismo veio antes, há mais de 3 milhões de anos (alguns registros fósseis indicam o intervalo de 4 a 6 milhões de anos)

Quais são as incertezas na teoria

Apesar de ser uma teoria popular, a hipótese da savana não é unânime. Não há consenso, por exemplo, sobre quando surgiram os primeiros hominíneos — há fósseis muito antigos, de 7 milhões de anos atrás, por exemplo, que não são aceitos por todos como nossos ancestrais, segundo Okumura. “Se considerarmos esses fósseis como parte da nossa linhagem evolutiva, os ambientes nos quais eles evoluíram não têm nada a ver com savana: são ambientes de bosque, alguns até com corpos d’água próximos”, disse.

Mesmo quando se pensa nos Australopithecus — que são comprovadamente nossos ancestrais —, “veremos que essas espécies habitaram uma enorme variedade de ambientes”, disse a professora. Esses ambientes incluíam a savana, mas também bosques e florestas mais densas. Além disso, essas espécies, apesar de serem bípedes, também eram adeptas da locomoção arbórea, o que contraria a hipótese da savana.

FOTO: Elza Fiuza/Agência BrasilCéu azul, chão avermelhado e árvores baixas com aparência de secas

Área do bioma do Cerrado

Um estudo publicado em 2019 por um cientista da Universidade de Utah, nos Estados Unidos, colocou a teoria em xeque. Comparando a savana atual com fósseis de animais importantes para o ambiente de milhões de anos atrás, ele concluiu que, na maior parte da história evolutiva dos ancestrais humanos, o ecossistema africano tinha pouco de savana. O bioma teria se desenvolvido entre 1 milhão e 700 mil anos atrás, quando o bipedalismo já existia, segundo a pesquisa.

Okumura disse que essas evidências não tiram a relevância da teoria. “O importante não é uma hipótese ser bem aceita, é ela levantar questões adicionais sobre o tema. Ao não termos um consenso sobre a presença da savana e sua importância na evolução humana, começamos a nos perguntar: se não era savana, o que era?”, afirmou.

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