
ação realizada por movimentos sociais durante sessão na Assembleia Legislativa do Estado do Amazonas pede justiça para Julieta Hernández
Um ano após a morte brutal da artista circense e feminista Julieta Hernández, no dia 23 de dezembro de 2023, em Presidente Figueiredo, no Amazonas, sua família e os movimentos sociais defendem que o crime seja tipificado como feminicídio. As qualificadoras são violência de gênero, porque a artista foi estuprada, torturada, queimada, assassinada e teve o corpo ocultado, atos que reforçam o menosprezo e ódio à sua condição feminina; além de xenofobia, que é preconceito por ser estrangeira. O processo, que está na fase de audiência de instrução, não tem data prevista para o julgamento.
“É incomum termos que provar que foi um feminicídio quando tudo é óbvio. Eles estupraram e assassinaram a minha irmã”, disse Sophía Hernández em entrevista à Amazônia Real.
Para Vanja Santos, representante da União Brasileira de Mulheres (UBM) e do Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres (CNDM), o julgamento do caso de Julieta deve acontecer dentro da perspectiva de gênero, como é previsto pelo Conselho Nacional de Justiça, e os parâmetros do crime violento que tirou sua vida devem ser levados em consideração.
‘Não tem para onde correr, senão não será um julgamento completo, um julgamento real que contempla tudo aquilo que aconteceu com Julieta em Presidente Figueiredo”, declarou.
O Ministério Público denunciou os réus Thiago Agles da Silva e Deliomara dos Anjos Santos por crimes de latrocínio, estupro e ocultacão de cadáver. O casal, que vivia na pousada Centro Cultural Mestre Gato com cinco filhos, local no qual Julieta se hospedou durante sua passagem pela cidade, confessou o crime no dia 5 de janeiro e desde então permanece preso preventivamente pela Polícia Civil do Amazonas.
O feminicídio é o assassinato de mulheres em contexto de violência doméstica ou de gênero. Conforme a Lei 14.994, de 2024, sancionada sem vetos pelo presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, em outubro deste ano, a pena para os condenados pelo crime de feminicídio passou a ser de 20 a 40 anos de prisão, maior do que a incidente sobre o de homicídio qualificado (12 a 30 anos de reclusão) como antes era classificado o crime. A lei também aumenta as penas para outros crimes, se cometidos em contexto de violência contra a mulher, incluindo lesão corporal e injúria, calúnia e difamação.

No dia 06 de janeiro de 2024 vários movimentos promeveram um ato pela vida da artista cicloviajante Julieta Hernández
“O sistema patriarcal ainda é muito forte em todo o mundo. As mulheres morrem pelo simples fato de serem mulheres, porque os homens acham que são donos das vidas e dos corpos delas. É preciso cuidado nas investigações, tem que evitar tirar conclusões precipitadas e avaliar os fatos. A justiça tem que compreender quando uma mulher está sendo vítima de violência, seja física, psicológica ou financeira, pois isso tudo acaba culminando muitas vezes no feminicídio. São violências que vão se somando, e a violência contra a mulher já é um problema de saúde pública”, afirmou Vanja Santos à Amazônia Real.
Para Sophía Hernández, o comportamento das autoridades do Amazonas reforça a pouca importância que se dá ao grave caso, que envolve feminicídio e xenofobia. “Esperamos avançar não só para demonstrar o feminicídio e a xenofobia, mas para demonstrar a falta de ações do sistema de justiça e a ineficiência da polícia. Esta é uma luta por justiça para Julieta e para todas as mulheres”.
Para a defesa da família de Julieta, vizinhos do centro cultural e demais testemunhas precisam ser ouvidas para esclarecer as circunstâncias do crime. De acordo com Vanja Santos, essa reclassificação poderia ser feita pelo Ministério Público de Presidente Figueiredo, “mas a promotora preferiu se retirar do caso a classificar, agora a instrução tem que ser concluída para que se possa definir a reclassificação”.
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A promotora em questão é Fábia Melo Barbosa de Oliveira, que renunciou o caso alegando ser “suspeita por motivo de foro íntimo”. A reportagem não conseguiu estabelecer contato para que a promotora se manifeste sobre o caso.
Procurado pela Amazônia Real, o novo promotor do caso, Gabriel Salvino Chagas do Nascimento, também não foi localizado para comentar sobre o caso. Em parecer ele disse que “não há qualquer prejuízo em seguir o feito conforme a denúncia ofertada. Não se trata do momento apropriado para se discutir teses jurídicas em abstrato, eis que são questões de mérito”.
A segunda audiência do caso Julieta Hernández foi realizada no último dia 3 de dezembro. Cinco testemunhas foram ouvidas presencialmente à portas fechadas no Fórum de Justiça Desembargadora Nayde Vasconcelos, no município de Presidente Figueiredo.
Fazendo pressão para que o crime seja tipificado como feminicídio, as ativistas do Fórum Permanente de Mulheres de Manaus se reuniram durante a audiência. Elas não foram autorizadas a entrar no prédio. “Estamos com um grande sentimento de indignação. Não classificar esse crime bárbaro como feminicídio coloca todas as mulheres em perigo, legitima a violação dos corpos femininos e a impunidade contra esses crimes”, disse a ativista feminista Michele da Silva, do Fórum Permanente de Mulheres de Manaus (FPMM).
Uma sexta testemunha era esperada na sessão, mas não compareceu. Por este motivo, o juiz responsável pelo caso decidiu marcar uma nova sessão, em data a ser definida, e manter a classificação do crime como latrocínio. A defesa de Julieta insiste em tentar reclassificar o crime como feminicídio. As cinco testemunhas ouvidas na segunda audiência apresentaram novos indícios que corroboram esta tese. O processo corre em segredo de justiça.
Após a morte de Julieta, artistas circenses, ciclistas, feministas e movimentos sociais realizaram manifestações em várias cidades do Brasil e do exterior, cobrando justiça. Também denunciaram a violência contra as mulheres. O sepultamento do corpo da artista foi no dia 12 de janeiro em Puerto Ordaz, na Venezuela.
Falha na investigação
A mobilização liderada pela família da artista pressiona há cinco meses o Poder Judiciário do Amazonas pela reclassificação. A ação foi articulada em parceria com a UBM e o Ministério das Mulheres.
Desde o início, Sophía Hernández apontou uma série de inconsistências e falhas na investigação. A primeira audiência em agosto de 2024 foi suspensa por falta de documentos em apenas 30 minutos, e testemunhas importantes não foram ouvidas.

Família de Julieta e movimentos feministas contestam crime configurado como latrocínio
“Eu estava no local do crime, nos levaram a acreditar que minha irmã havia sido assassinada em um local distante e de difícil acesso, sem vizinhos e pessoas por perto. Para nossa grande surpresa, esse centro cultural Mestre Gato é na zona mais turística de Presidente Figueiredo, junto à rua e rodeada de vizinhos. O local não tem portas nem janelas e onde assassinaram a minha irmã ouve-se e vê-se absolutamente tudo, por isso tudo, os vizinhos tinham que ser ouvidos”, reivindica.
Segundo Carlos Nicodemos, advogado da família de Julieta, os indícios já obtidos de que houve violência de gênero “comprovam que a motivação do crime não foi o roubo, mas a violência de gênero associada à xenofobia”. Ele reforça que a “configuração do crime como feminicídio retrata os fatos e descortina todo um debate sobre o enfrentamento ao feminicídio no Amazonas”.
A Justiça local insiste na narrativa de latrocínio (roubo seguido de morte), ignorando os elementos de violência de gênero, e o caminho para a reclassificação do crime como feminicídio precisa passar por algumas etapas fundamentais, como a produção de depoimentos adicionais, laudos periciais e provas documentais que evidenciem a violência de gênero e a xenofobia que Julieta sofreu.
O que está em jogo
A reclassificação do crime como feminicídio vai além da busca por justiça no caso de Julieta Hernández. Reconhecer o feminicídio significa expor e enfrentar a violência de gênero em uma região onde os índices de feminicídio seguem alarmantes.
No Amazonas, os índices de violência letal contra mulheres, que incluem feminicídio e homicídio doloso feminino, são os mais elevados do estudo Cartografias da Violência na Amazônia, divulgado no último dia 11 de dezembro pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em parceria com o Instituto Mãe Crioula.
A taxa no estado alcança 6,4 mortes a cada 100 mil mulheres, representando um aumento de 69% em relação à média nacional, que é de 3,8 por 100 mil. Além disso, os números do Amazonas superam os índices da Amazônia Legal, cuja taxa é de 1,7 por 100 mil mulheres, ainda 21,4% acima da média nacional.
Enquanto a próxima audiência não é marcada, a família de Julieta, movimentos feministas e organizações sociais seguem mobilizados, exigindo que a Justiça do Amazonas não apenas corrija a tipificação do crime, mas que assuma seu papel no combate à misoginia e à violência contra mulheres e migrantes no país.
Dias antes da segunda audiência do caso, Sophía Hernández publicou um vídeo nas redes sociais cobrando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e a primeira-dama Janja da Silva a acompanharem o caso de Julieta de maneira “mais contundente”. Ela parabenizou Lula e Janja pela campanha Feminicídio Zero, lançada de forma permanente neste ano, mas reivindicou que o caso Julieta seja usado como um símbolo da luta contra a violência que atinge mulheres. “Vamos demonstrar a força da campanha ‘Feminicídio Zero’ no Brasil com o caso da minha irmã. Não vamos permitir que se siga perpetrando injustiças dentro da Justiça brasileira”, disse na publicação.