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No sábado (8), o Brasil ultrapassou a triste marca de 100 mil vidas perdidas para a covid-19. Estranhamente, ouvia-se da minha residência total clima de festa: fogos de artifício, gritos e buzinas. Enquanto parte do país refletia sobre vidas perdidas, outra se emocionava com um jogo de futebol.
Não me entenda errado. Se admitidamente não sou uma pessoa que se interessa por futebol, eu certamente entendo a necessidade de atividades como a cultura e esportes , que não somente nos trazem distração e alento, mas também nos ajudam a trabalhar juntos, superando diferenças individuais. O que eu não entendo é a desproporção entre a celebração feita para um jogo e para outras grandes conquistas. Gostaria de ver tamanho empenho e emoção para as ações que me inspiram no meu dia a dia: fogos de artifício e uivos para celebrar a defesa de tese de um excelente estudante, carreatas e buzinaços quando alguém descobre e publica um grande achado científico, oferecimento de salários exemplarmente altos para jovens cientificamente talentosos, valorizando sua seriedade.
A verdade é que chegamos a 100 mil mortos porque não valorizamos nem escutamos os cientistas. Tornou-se claro hoje que os países que se saíram melhor e conseguiram controlar a transmissão do vírus são não somente aqueles que têm a estabilidade econômica e coordenação para conseguir implementar políticas claras, mas também aqueles que organizaram suas atividades com informações e trocas de ideias constantes com cientistas e entidades acadêmicas. Não vou negar que a população brasileira, seja por vulnerabilidade econômica ou desconhecimento e incompreensão, tenha parte da responsabilidade em não termos conseguido instaurar índices suficientes de isolamento físico. Porém, perante uma liderança inconstante, anticientífica e mais interessada em firmar divisões políticas que estabelecer alianças, as chances de sucesso dos gestores municipais e estaduais que tentaram manter medidas cabíveis e cientificamente embasadas não eram boas. O resultado são mais de 100 mil mortes confirmadas.
Será que aprendemos agora que precisamos escutar e apoiar cientistas futuramente? Tudo indica que a nível federal estamos muito longe disso. As agências federais de fomento à ciência, admitidamente, nunca receberam a atenção que merecem. A despeito disso, ainda financiam a maioria das bolsas que apoiam as atividades de jovens pesquisadores, estudantes de graduação e pós-graduação, que fazem a grande maioria do desenvolvimento científico nacional. O futuro está incerto para esses bolsistas, que são a força-tarefa científica nacional, pois o sistema de distribuição e designação dessas bolsas está sendo mudado, tirando a responsabilidade de atribuí-las das mãos dos cientistas dos programas de pós-graduação (que se baseiam no mérito do estudante e projeto) e passando-a para avaliações centralizadas, aplicadas por meio de chamadas em áreas específicas.
À primeira vista, para quem não conhece os caminhos nada lineares em que a ciência caminha , fazer chamadas para áreas específicas pode parecer uma boa ideia, pois vai investir os parcos recursos que temos em áreas de interesse nacional. Já ouvi inclusive que nós cientistas no momento deveríamos focar toda nossa atenção em atividades científicas relacionadas à covid-19. Mas não é assim que a ciência funciona. Podemos rapidamente durante a pandemia fazer avanços tecnológicos: já desenvolvemos testes específicos, métodos de monitoramento de interações e mobilidade, tratamentos, e caminhamos para ter vacinas. Mas esses avanços foram feitos em cima de conhecimento já adquirido para outras doenças. O que se descobre de verdadeiramente novo e que altera os caminhos da humanidade demanda mais tempo, e não se prevê em editais temáticos, justamente porque, se fosse previsível, não seria genuinamente novo. Quem pode avaliar se algo a ser investigado é inovador são cientistas, que conhecem o estado atual do conhecimento e suas lacunas.
Alicia Kowaltowskié médica formada pela Unicamp, com doutorado em ciências médicas. Atua como cientista na área de Metabolismo Energético. É professora titular do Departamento de Bioquímica, Instituto de Química da USP, membro da Academia Brasileira de Ciências e da Academia de Ciências do Estado de São Paulo. É autora de mais de 150 artigos científicos especializados, além do livro de divulgação Científica “O que é Metabolismo: como nossos corpos transformam o que comemos no que somos”. Escreve quinzenalmente às quintas-feiras.
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.
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