Coluna

Atila Roque

O labirinto internacional em meio à névoa da democracia

31 de maio de 2022

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Estamos em um daqueles momentos na história em que os mapas cognitivos que nos trouxeram até aqui não servem mais como guias de futuro

É preciso reconhecer que entramos, coletivamente, em um labirinto existencial sem uma bússola que nos leve necessariamente à melhor saída. Estamos em um daqueles momentos na história em que os mapas cognitivos que nos trouxeram até aqui não servem mais como guias de futuro. Em meio a tanto ruído e turbulência, precisamos enxergar além da neblina para não cairmos no abismo.

Estamos diante de uma crise mundial sem precedentes, com ênfase especial às dimensões política, econômica e ambiental. Se espalhou uma enorme desconfiança nas instituições que produz incerteza quanto ao que nos espera na próxima esquina. Nesse contexto, o medo se torna o pior dos conselheiros, induzindo a um individualismo destrutivo que passa a olhar o outro como competidor por recursos que, longe de serem escassos, estão cada vez mais concentrados em poucas mãos. O sucesso eleitoral de tendências populistas autoritárias, em diferentes partes do mundo, acendeu o alarme para cenários de morte da democracia por meios democráticos, algo impensável há pouco tempo.

Não era essa a expectativa de quem olhava o mundo a partir das mudanças trazidas pelo período pós-guerra. Um dos desdobramentos, ainda sob o calor da grande tragédia das duas guerras mundiais, foi o nascimento de um sistema de cooperação que combinava organismos multilaterais de governança global com a presença cada vez mais destacada de organizações e movimentos sociais comprometidos com valores de solidariedade internacional, fortemente marcado pelo ideário de direitos humanos universais.

Mesmo sabendo que não se tratava de um humanismo desinteressado – mas em grande medida resultado de um rearranjo político e de disputas culturais inevitáveis no mundo nascido da Guerra Fria – alguns canais de cooperação econômica Norte-Sul foram abertos. É desse período o crescimento de toda uma rede de instituições, agências governamentais, fundos, mecanismos bilaterais e outros que conformaram um sistema global de ajuda que marcou profundamente os contornos das relações internacionais durante boa parte do século 20.

Se é verdade que, por um lado, alguns dos mecanismos criados para canalizar a “ajuda para o desenvolvimento” acabaram por aprofundar as desigualdades globais e aumentar a dependência dos mais pobres, por outro lado, alimentou um amplo debate a respeito dos desequilíbriosNorte-Sul e da responsabilidade dos países ricos. Foram décadas repletas de discussão sobre o sentido do desenvolvimento e da democracia, ainda que atravessada pelos alinhamentos ideológicos do período.

Paralelo ao sistema de cooperação internacional oficial e governamental, emergiu uma rede civil de solidariedade internacional que se organizou com força na Europa, nos Estados Unidos e no Canadá para defender a garantia dos direitos humanos em países pobres ou em desenvolvimento, na linguagem das agências internacionais; uma rede que na América Latina e no Brasil se fortaleceu com a formação de um forte movimento internacional de solidariedade e de denúncia das violações de direitos humanos cometidos pelos regimes ditatoriais instalados na região, especialmente a partir das décadas de 1970 e 1980.

O delírio de superioridade de uma minoria cada vez mais isolada promete o reino dos céus ou um outro planeta apenas àqueles capazes de comprar o bilhete na primeira classe

A década de 1990 do século passado representou, em grande medida, o auge das esperanças de um mundo orientado por princípios de justiça e igualdade, tendo nas Nações Unidas a referência principal do ponto de vista programático. Foi a década das conferências sociais, inaugurada em grande estilo pela Rio 1992, sobre meio ambiente e desenvolvimento, que expandiu enormemente o espaço para a participação das organizações da sociedade civil nacionais nos processos globais. Era o começo da internet e das novas possibilidades trazidas pela comunicação imediata e horizontal entre movimentos sociais e organizações não governamentais, até então restritas a uma presença predominantemente nacional, com algumas exceções, e dependente das grandes organizações internacionais para se fazer representar nos espaços internacionais.

Ao final da década, o “ciclo social de conferências da ONU” estabeleceu uma agenda global para o desenvolvimento sustentável, com metas e compromissos assumidos pelos estados membros da ONU. Parecia que uma nova era se abria para a cooperação internacional, com maior protagonismo das populações diretamente afetadas, representadas por uma miríade de organizações e redes das sociedades civis dos países participantes. Tudo isso vai abaixo com os desdobramentos dos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001 e a promoção, sob a liderança dos EUA, da chamada guerra ao terror que praticamente anulou os ganhos obtidos pelo multilateralismo pós queda do muro de Berlim em 1989, e jogou as Nações Unidas a um estado de quase insignificância em relação as decisões internacionais.

Esse quadro também resultou no enfraquecimento das redes civis de solidariedade internacional, cada vez mais subtraídas de canais institucionais para oferecer resistência efetiva às ameaças diversas que pairam sobre a humanidade, sejam as violações de direitos humanos de populações específicas, sejam as crises internacionais que demandariam negociadores com legitimidade e reconhecimento das partes envolvidas, com capacidade para mediarem conflitos mais graves. A eclosão e os desdobramentos da guerra na Ucrânia talvez seja o exemplo mais contundente da falência da diplomacia internacional. Os tempos são voláteis e perigosos.

A verdade é que estamos em guerra, não nos enganemos. Não apenas a guerra convencional, com armas, bombas e enfrentamento de Exércitos. Mas uma guerra muito mais profunda, uma espécie de guerra contra tudo e contra todos, uma versão ainda mais destrutiva e caótica daquela descrita por Thomas Hobbes em “Leviatã” (1651), anterior ao contrato social. Não é uma guerra apenas entre nós, mas também contra toda a natureza, toda a vida do planeta; uma guerra que aceita a destruição de quase tudo para a manutenção do poder e do privilégio de alguns. Basta ver os dados recentes do relatório publicado pela Oxfam sobre o aumento das desigualdades e o acúmulo de riqueza no topo da pirâmide justamente no período da pandemia. Enquanto milhões eram jogados de volta à situação de fome e miséria absoluta, alguns poucos privilegiados duplicaram ou triplicaram a sua riqueza e ascenderam ao topo das listas dos mais ricos do mundo.

O delírio de superioridade de uma minoria cada vez mais solitária e isolada, concentrando nas mãos recursos e poderes incomensuráveis, promete o reino dos céus ou um outro planeta reservado apenas àqueles capazes de comprar o bilhete na primeira classe para um futuro distópico, reservado apenas para poucos. Não se sabe bem, ninguém pensa nisso, no que será feito dos que sobrarem. Na verdade, como diz o título daquele filme, ninguém quer olhar para cima. Seguimos labirinto adentro, turvados pela névoa dessa guerra profundamente desigual, mas que ao final acena com o abismo para todos.

Atila Roqueé historiador, cientista político e diretor da Fundação Ford no Brasil. Exerceu papel de liderança em diferentes organizações da sociedade civil no Brasil e no exterior. Foi diretor-executivo da ActionAid International nos EUA e do INESC (Instituto de Estudos Socioeconômicos). Antes de assumir a Fundação Ford, em 2017, foi diretor-executivo da Anistia Internacional no Brasil. Faz parte do Conselho Diretor do GIFE (Grupo de Institutos, Fundações e Empresas).

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