Bastou ser anunciada a surpreendente decisão do ministro Edson Fachin, do STF – ao devolver, na prática, a elegibilidade ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva – para que uma chiadeira emergisse em vigor: a volta do petista ao jogo eleitoral aguçaria uma polarização entre extremos. Segundo tal tese, a qualidade da combalida democracia brasileira, já contaminada por desinformação e pela profusão de ódios mútuos, estará ainda mais afetada pela falta de solução “fora dos extremos”.
Os temores da radicalização são razoáveis: o atual cenário deixa claro o dano causado pelo extremismo à política, e já se sabe que a polarização do debate público se retroalimenta com fake news e discursos de ódio, prejudicando o debate, promovendo intolerância e reduzindo confiança no diálogo e na construção de soluções negociadas para problemas coletivos.
A razoabilidade dos temores, porém, termina aí. A polarização existe e precisa ser reconhecida, mas é o momento de qualificar esse debate. O mau uso do termo pode torná-lo enganoso ou até camuflar algum oportunismo, já que o fato de dois grupos ou lideranças polarizarem o debate público não significa que sejam os polos (ou extremos) equivalentes no espectro político; e insistir nessa falsa equivalência, atribuindo extremismo a um oponente, pode ser bastante vantajoso para justificar o próprio comportamento radicalizado e intolerante.
Muitas das vozes que apontam a necessidade de uma alternativa que escape ao lulismo e ao bolsonarismo o fazem tratando-os indevidamente como “extrema direita” e “extrema esquerda”.
Isso reforça que, se a ideia de polarização parece espalhar-se por todas as rodas de conversa (e de não-conversa) Brasil afora, uma variante mais complexa ainda se mostra pouco discutida no país: a polarização assimétrica.
A polarização assimétrica leva em conta o fato de que os partidos que polarizam o debate não são iguais em valores e métodos. No ensaio “Todo Lado Tem Dois Lados” , publicado em março de 2020 na revista Serrote, o filósofo Rodrigo Nunes aponta como o conceito ganhou contornos mais nítidos nos EUA de Barack Obama. Mesmo sendo um reconhecido e convicto contemporizador, Obama encontrou uma oposição republicana barra pesada, disposta a desestabilizar o governo e adepta de fake news – republicanos chegaram a acusá-lo de não ser americano e tentar instalar uma ditadura comunista.
A ideia da polarização que resumiria os embates entre Bolsonaro e seu principal adversário em 2022 é tentadora. Mas definitivamente parece insuficiente, e até mesmo imprópria
A radicalização dos republicanos exigiu de Obama e do Partido Democrata a responsabilidade de adotar posições negociadas de forma que a relação com o “outro lado” não fosse mais de extremos equivalentes, e, sim, assimétrica.
No caso brasileiro, se é verdade que bolsonaristas e lulistas têm hábitos e práticas, a seu modo, questionáveis – como não enxergar problemas análogos no próprio campo e alimentar uma narrativa divisiva – também é verdade que ambos os lados não são o extremo oposto do outro.
A ideia da polarização que resumiria os embates entre Bolsonaro e seu principal adversário em 2022 pode até fazer sentido, e é tentador segui-la. Mas definitivamente é insuficiente, e até mesmo imprópria.
Esquerda e direita, de fato, representam dois polos de um espectro ideológico específico – e entre um e outro há uma grande diversidade de posições. O problema de associar tais polos a uma polarização clássica que estaria em vigor no Brasil está na noção de extremismo.
Muitos anos atrás o filósofo Norberto Bobbio invocava a clássica imagem da ferradura para destacar a diferenciação que mais lhe importava: aquela que separava extremistas e moderados. Assim como a ferradura, cuja curvatura leva as pontas a se juntarem, no espectro ideológico os extremos se tocam. Na comparação de Bobbio, o ponto de convergência entre extremistas de esquerda e de direita seria a antidemocracia.
Poucos podem levar a sério a ideia de que Lula e o lulismo são antidemocráticos como Bolsonaro e os bolsonaristas. Em outras palavras, Lula e Bolsonaro estão claramente à esquerda e à direita do espectro ideológico, mas definitivamente não se localizam em pontos simétricos, razão pela qual é fundamental considerarmos o conceito de polarização assimétrica.
Lula tem muitos defeitos, mas não é um extremista. Como presidente foi, antes de tudo, um pragmático. Seu discurso conciliador no Sindicato dos Metalúrgicos, após recuperar o direito de ser candidato, reafirmou tal condição – ainda que possa ter sido orientado por cálculo político e senso de oportunidade diante de um presidente negacionista, vocacionado para o autoritarismo e despreparado para liderar o país. A esquerda tem também seus extremistas autoritários, mas, felizmente, são inexpressivos e estão distantes do poder.
É importante não cairmos na ilusão difundida por seus apoiadores: o fatalismo de que ambos são as únicas (ou as melhores) opções para o Brasil. Apostando talvez numa profecia autorrealizável – aquela máxima segundo a qual uma crença provoca, ela própria, a sua realização – a dinâmica dos polos faz com que pareçam a única alternativa concreta disponível.
O antagonismo político e a polarização são inerentes à disputa democrática, contrapondo adversários que se mostram como alternativas claras. O problema está quando a polarização é usada como estratégia em si, para impor a formação de grupos isolados e alinhados para enfrentamentos, o que inviabiliza diálogos, promove hostilidades extremas, alimenta ódios e preconceitos e barra soluções negociadas.
Num passado recente, tínhamos uma polarização do debate minimamente aceitável e civilizada, quando o conflito se dava entre PSDB e PT, e os extremistas de cada lado eram caricaturas insignificantes. O desafio de então para nomes como Marina Silva ou Ciro Gomes era projetar-se com eficiência como alternativas àqueles polos – vozes mais ou menos moderadas, mas terceiras ou quartas vias capazes de serem ouvidas pelo distinto público.
Para 2022 o desafio se mantém, mas num ambiente em que um dos polos se reafirma como um projeto de negação de qualquer pacto civilizatório. A polarização assimétrica, portanto, tem nome: a antidemocracia contra os valores democráticos e republicanos. De um lado, Bolsonaro. Do outro, aqueles que tiverem competência para qualificar o debate, se fazerem vistos e ouvidos e nos ajudar a devolver a capacidade de conviver com as diferenças e resolver nossos conflitos sem violência.
Rafael Poço é diretor-executivo do Instituto Galo da Manhã e idealizador do Despolarize. Advogado, foi assessor na Procuradoria-Geral de Justiça do Ministério Público de São Paulo. Também foi assessor da candidata Marina Silva na eleição presidencial de 2014. Cofundador do Instituto Update, apresentou o programa “Política: Modo de Usar” (Globo News).
Rodrigo de Almeida é jornalista e cientista político. Atua como consultor de comunicação e política para diferentes organizações da sociedade civil e empreendedores cívicos. Tendo trabalhado em duas campanhas presidenciais (PT e PSDB), foi assessor de comunicação do então ministro da Fazenda, Joaquim Levy (2015), e secretário de Imprensa da Presidência da República (2015-2016), experiências que resultaram no livro “À sombra do poder: bastidores da crise que derrubou Dilma Rousseff”.