Coluna
João Marcelo Borges
Por que a educação não ajudou o Brasil a controlar a pandemia
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Passado um ano desde que a OMS (Organização Mundial da Saúde) declarou a pandemia de covid-19, o Brasil encontra-se no pior momento da crise sanitária – com recordes de novos casos diários e de óbitos e com o colapso quase integral do sistema hospitalar e ambulatorial em todo o país. Já contabilizamos mais de 280 mil mortos e as autoridades governamentais brasileiras não conseguiram se coordenar e menos ainda alinhar suas medidas com o comportamento da sociedade de sorte a impedir que se alcançasse uma situação tão trágica.
E a educação, o que conseguiu fazer nesse período? Por que o Brasil é um dos países que mais tempo leva com a maior parte de suas escolas fechadas? Em particular no caso da educação básica, que reúne a esmagadora maioria dos profissionais e estudantes brasileiros, o que poderia ter sido feito para prevenir a contaminação descontrolada de tantos cidadãos, contribuindo para combater a pandemia e para oferecer de forma equitativa uma experiência pedagógica mínima para os alunos?
É obrigatório começar fazendo duas importantes ressalvas. Primeiro, quando da eclosão da pandemia, nenhum país, governo ou setor específico tinha um plano já elaborado para lidar com um evento inesperado dessa magnitude, repercussão e velocidade. Segundo, e a despeito da anterior, houve esforços mais ou menos eficazes feitos por nações, setores, profissionais e cidadãos em todo o mundo. Na educação, em particular, há incontáveis exemplos de iniciativas quase heróicas por parte de gestores, professores, estudantes e pais. Poucos setores foram tão essencialmente afetados pela pandemia quanto o educacional, posto que sua essência é a interação (entre gestores e profissionais, entre professores e estudantes, entre pais e alunos, entre os próprios estudantes etc.), atividade mais radicalmente alterada pelas disrupções geradas pela pandemia e a imposição de medidas de distanciamento social.
Não obstante essas ressalvas, alguns países foram impactados mais cedo pela pandemia, oferecendo lições para nações atingidas posteriormente, como o Brasil. Ademais, ao longo de um ano, claramente alguns países conseguiram desenvolver e implementar metodologias mais exitosas no controle do contágio, tratamento dos infectados e, portanto, na gestão da pandemia, o que lhes permitiu, por conseguinte, retomar mais rapidamente algum nível de normalidade em suas sociedades. O Brasil certamente não é um desses casos. Não tratarei nesta coluna dos absurdos cometidos ou incentivados pelo governo federal em termos de tratamento precoce, estímulo ao uso de medicamentos ineficazes, incapacidade ou falta de interesse em estabelecer uma coordenação nacional, entre outros. No entanto, mesmo sem apoio do governo, e por vezes resistindo à sua atuação sabotadora, entendo que o setor educacional poderia ter se saído melhor. Por que não fizemos isso?
A verdade é que uma das maiores falácias sobre o Brasil é que ele é um país desacostumado a catástrofes. Isso pode até ser verdade quando nos referimos a terremotos ou furacões, mas tragédias naturais (inundações, queimadas etc.) são costumeiras e, além delas, tragédias humanas são ainda mais comuns: chacinas, pobreza extrema, violações múltiplas e cotidianas dos direitos de vastos contingentes populacionais. Só na cidade do Rio de Janeiro, entre julho de 2016 e julho de 2017, mais de 20% dos alunos da rede municipal de ensino perdeu de 1 a 15 dias de aulas em função de tiroteios, como mostrou o estudo “Educação em alvo: os efeitos da violência armada nas salas de aula”, produzido pela Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getúlio Vargas em parceria com o aplicativo Fogo Cruzado.
Crianças das escolas públicas são as que mais perdem pais, irmãos ou outros parentes para mortes intencionais violentas, que ocorrem na casa das dezenas de milhares por ano no Brasil. Profissionais da educação também são direta ou indiretamente afetados por essas situações. Qualquer escola que tenha essas crianças ou adolescentes, ou cujos profissionais sofram essas formas de violência, é uma escola acostumada a conviver com a tragédia. Muitas delas já desenvolveram mecanismos para lidar com esses eventos, por vezes com o apoio da sociedade civil, noutras com o suporte eventual das secretarias municipais ou estaduais. Mas por que esses exemplos não viraram protocolos para lidar com situações traumáticas em todas as escolas de uma rede de ensino ou do país? Se não naturalizássemos tanto as tragédias e violências de nosso cotidiano, teríamos mecanismos já testados e profissionais aptos a implementá-los, com as devidas adaptações, em um cenário tão traumático como o causado pela pandemia.
Imaginem o que poderíamos ter feito se parte dos profissionais da educação básica brasileira trabalhassem lado a lado com assistentes sociais e equipes de saúde da família
Faltou aos gestores públicos brasileiros – inclusive os da educação – a articulação institucional e o aproveitamento do conhecimento e experiência dos profissionais acostumados a lidar com emergências: Defesa Civil, assistentes sociais, profissionais de saúde, organizações da sociedade civil. Trabalhei em equipes de pronta resposta a emergências como terremotos e grandes inundações. Nesses casos, há sempre três questões imediatas: 1) identificar e contatar os afetados; 2) oferecer-lhes as necessidades mínimas tão logo quanto possível (comida, água, teto); e 3) consolidar uma rede de apoio e construir com os afetados um plano de ação de médio prazo para que eles possam reconstituir em alguma medida os aspectos de suas vidas que foram impactados (moradia, emprego, saúde física e mental, educação).
Em meados de abril de 2020 já sabíamos, com base nas projeções dos melhores epidemiologistas que, salvo algum comportamento muito inesperado do vírus, a pandemia seguiria seu curso ascendente pelo menos até setembro do ano passado. Também sabíamos, com base na experiência histórica da pandemia de gripe espanhola, que a segunda onda tende a ser mais fatal que a primeira. Por que então, no Brasil, a primeira coisa que as redes públicas resolveram fazer foi colocar de pé sistemas de educação remota?
A primeira coisa que deveriam ter feito era identificar e contatar todos os membros de sua rede de ensino: profissionais, pais e responsáveis, estudantes. Até hoje há redes que ainda não possuem os contatos de toda a comunidade escolar. Ótimo se pudessem fazer isso em plataformas para comunicação bidirecional imediata, mas há tecnologias mais simples, como telefone, SMS e cartas que funcionariam (e são usadas por algumas redes). Segue urgente, portanto, que todas as redes de ensino construam sua própria forma de contatar os membros da sua comunidade escolar.
Com isso feito, poderiam ter então identificado as necessidades imediatas desse grupo. Estamos falando de mais de 50 milhões de pessoas, se somarmos profissionais da educação básica pública, pais e alunos. Muitas redes não entregaram merenda escolar a todos os estudantes porque não possuíam esses contatos. Algumas conseguiram distribuir recursos via cartão eletrônico, mas infelizmente o Congresso Nacional não permitiu que os recursos federais do Pnae (Programa Nacional de Alimentação Escolar) fossem utilizados dessa forma, o que não prejudicaria os agricultores familiares e ainda beneficiaria a economia local de pequenos comerciantes onde vivem muitos dos estudantes das redes públicas. Mais além, essa rede de contatos poderia então servir, se devidamente capacitada, como fonte de informação crucial tanto para os serviços de assistência social de estados e municípios quanto para rastrear os infectados pelo coronavírus, oferecendo informações úteis de isolamento e rapidamente reduzindo a contaminação comunitária.
Estudo recente quase-experimental realizado no Reino Unido demonstrou que o rastreamento de contatos, apesar de difícil, funciona e pode reduzir contágios e mortes. Imaginem o que poderíamos ter feito se parte dos profissionais da educação básica brasileira trabalhassem lado a lado com assistentes sociais e equipes de saúde da família para identificar pessoas com sintomas de covid-19, orientá-las para testagem, rastrear seus contatos e lhes fornecer informações corretas para seu isolamento e tratamento? E se algumas das mais de 140 mil escolas públicas brasileiras fossem disponibilizadas para que famílias pobres com membros dos grupos de risco pudessem se isolar temporariamente, para prevenir sua infecção e a contaminação de seus familiares?
Essa mesma rede de contatos seria útil para fazer o acompanhamento da educação remota oferecida aos alunos. Ela não precisaria passar por cima das lideranças de cada escola, mas antes as empoderaria, construindo confiança entre eles e seus estudantes e demais membros da comunidade, com os quais já possuem contato regular. Enquanto diversas redes escolares e organizações buscavam oferecer sistemas de ensino online, que requerem uma infraestrutura de conectividade que nem o setor privado conseguiria estabelecer em tão pouco tempo, poucos foram os que entenderam que os melhores canais seriam os mais tradicionais, pois de maior alcance: rádio, TV e distribuição de materiais impressos. Por óbvio, não estou dizendo que as redes não devessem buscar essas soluções online, mas a ordem de priorização foi equivocada e não levou em conta a realidade do país. Também na escolha dos conteúdos seria essencial identificar as componentes mais cruciais dos currículos de cada nível de ensino – algo em que o papel do MEC (Ministério da Educação) seria importante, mas que a sociedade civil poderia assumir na ausência dele.
A estruturação da oferta de aulas remotas, por incrível que possa parecer, não era a resposta mais urgente, mas apenas a terceira na ordem de urgência, segundo profissionais acostumados a lidar com emergências e traumas. Não porque aulas e educação não são importantes, mas porque elas dependem da vida e da interação. A educação, em aliança com demais setores, poderia ter contribuído para reduzir os contágios e as mortes, mas não foi lhe dada a importância crucial que possui, como a política social regular mais abrangente do país. Essas poucas dicas, e muitas outras, eu incluí em um texto produzido em abril de 2020, circulado timidamente entre alguns especialistas e gestores do setor. Caiu em ouvidos moucos. Será que faremos o que precisa ser feito agora que, infeliz e inacreditavelmente, estamos num novo pior momento da pandemia?
João Marcelo Borgesé pesquisador do Centro de Desenvolvimento da Gestão Pública e Políticas Educacionais da Fundação Getulio Vargas. Foi diretor de Estratégia Política do Todos Pela Educação (2018-2020), Consultor Sênior e Especialista em Educação do Banco Interamericano de Desenvolvimento (2011-2018), além de ter ocupado cargos de direção no governo do estado de São Paulo e de gerência no Ministério do Planejamento. Idealizador e cofundador do Movimento Colabora Educação, é mestre em economia política internacional, pela London School of Economics, onde estudou como bolsista Chevening, do governo do Reino Unido.
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