Mariana Inglez é bioantropóloga. Formada em ciências biológicas na Universidade Presbiteriana Mackenzie, onde ingressou com bolsa integral, como cotista, via Prouni (Programa Universidade para Todos), hoje faz doutorado na USP (Universidade de São Paulo), explorando a relação entre a espécie humana e fatores sociais, econômicos, culturais e ambientais.
Realiza os atuais estudos em comunidades ribeirinhas da Amazônia, região pela qual diz que se apaixonou. Apesar da falta de incentivo e estabilidade da carreira acadêmica, sente-se realizada com a pesquisa. “Sempre amei estar em contato com a natureza, com gente, com histórias. Consegui unir tudo isso como bioantropóloga”, disse.
Inglez é a segunda entrevistada da cobertura especial sobre ações afirmativas que o Nexo faz em parceria com o Instituto Ibirapitanga. A iniciativa traz entrevistas com profissionais negros e negras que tenham sido cotistas em universidades ou que de alguma forma tenham sido beneficiados por ações afirmativas. O objetivo é destacar suas trajetórias e o impacto dessas políticas em suas vidas.
Ações afirmativas
Quem : Mariana Inglez
O quê : Bioantropóloga
Como você foi seu percurso até a universidade? Por que escolheu a carreira que escolheu?
MARIANA INGLEZ Sempre estudei em escolas públicas na região oeste de São Paulo. A situação socioeconômica da minha família não era estável ou confortável e foi piorando ao longo do meu ensino fundamental, quando meu pai optou pelo abandono parental. Minha mãe não tinha renda, e precisamos de ajuda para o básico, como moradia e alimentação, de outros membros da família materna e de programas de acolhimento para crianças e jovens, na época chamados EGJ (Espaço Gente Jovem), onde eu e meu irmão ficávamos no contraturno escolar.
Minha mãe foi a primeira geração da família que se formou em curso superior e, como professora, sempre valorizou a educação. Com ela, internalizei que minha única ferramenta para romper com a pobreza seria a via educacional. Sempre entendi como “minha responsabilidade” tirar as melhores notas, ser a melhor aluna. Também me recordo de sempre ter dito que queria ser médica. Me lembro de fazer um desenho em alguma atividade sobre o que queríamos ser no futuro e de, ao olhar minha representação vestida de médica com a pele pintada com lápis marrom, me perguntar: “será que existe médica dessa cor?”.
O tempo passou e fui aprovada na Etec Prof. Basilides de Godoy no ensino médio. As escolas do Centro Paula Souza, assim como as escolas federais de ensino médio, historicamente oferecem um ensino público gratuito de melhor qualidade. Me recordo que ficava feliz por não ter “aulas vagas” e por ter bons professores que nos faziam acreditar na possibilidade de cursar uma boa universidade. Mas, mesmo sendo uma das melhores alunas da escola, ao treinar para o vestibular a partir de alguns simulados, fui entendendo que não tinha sido apresentada a todo o conteúdo exigido e não atingiria a nota de corte necessária para o curso de medicina. Comecei a fazer estágios remunerados na mesma época para ajudar na renda de casa. Mesmo tendo conseguido bolsas parciais em alguns cursinhos particulares, sabia que não teria recursos para eles durante o ensino médio ou quando o terminasse. O ideal seria entrar direto em algum curso.
Foi nesse momento que optei por biologia. Era a minha disciplina favorita, talvez eu ainda pudesse focar em trabalhar com biologia humana, e, também no terceiro ano, assisti ao documentário da BBC sobre “a Eva mitocondrial” (sobre evolução humana), que me deixou encantada. Me lembro de ter passado muito perto da nota de corte para ciências biológicas na Universidade de São Paulo. Vale dizer que na época, em 2006, a USP não tinha reserva de vagas ou cotas para alunos negros ou vindos de escolas públicas. Apesar de ter ficado frustrada por não realizar o sonho de “entrar na universidade pública”, consegui bolsa integral, como cotista, via Prouni, na Universidade Presbiteriana Mackenzie, onde me formei bacharela e licenciada em ciências biológicas.
Como foi sua vida na universidade como cotista?
MARIANA INGLEZ O acesso à universidade foi a descoberta de um novo mundo. Todos os meus horizontes se ampliaram. Ainda assim, houve muitos momentos doloridos, mesmo que eu também tenha feito amizades que perduram até hoje. Para quem não é de São Paulo, talvez seja importante dizer que a Universidade Presbiteriana Mackenzie é uma das melhores universidades privadas do país e também um espaço da elite. Foi nessa universidade, com meus colegas de turma, que entendi o abismo das desigualdades sociais em nosso país — gritantes, mesmo na pequena distância entre as carteiras de uma sala de aula. Eu, que tinha que contar os centavos para garantir as cópias de apostilas e livros, aprendi ali o que era haras quando um dos meus colegas falou com a maior naturalidade do mundo sobre as raças de cavalos de sua família.
É interessante lembrar que, antes mesmo de nos conhecermos, nossa turma organicamente se dividiu no espaço da sala de aula. Logo fiz boas amigas e amigos, também bolsistas em sua maioria, via Prouni ou bolsas que a universidade sempre ofereceu – importante lembrar. Com essas pessoas, pude compartilhar algumas sensações de “não pertencimento”, de escassez, de incredulidade diante de realidades tão distintas.
Também tive excelentes professoras e professores durante a graduação. Poucos contribuíram com a sensação de aquele não ser o meu lugar. Mas, na primeira semana, me lembro de uma professora em particular, também da elite paulista, fazer a chamada perguntando sobre os sobrenomes e famílias de cada um, pulando obviamente os “Silva” ou os “dos Reis”.
Entre nós, bolsistas, me recordo de o período de matrícula, a cada seis meses, ser extremamente desgastante e tenso. Semestralmente precisávamos comprovar que nossa renda familiar ainda era a mesma. Como eu não tinha contato com meu pai, tinha que buscar vias de comprovar que não recebia pensão alimentícia ou que não poderia ter a assinatura dele em meus documentos. Passávamos horas em uma fila para esse processo de rematrícula, e hoje identifico a falta de sensibilidade da instituição para lidar conosco nesses momentos. Algumas falas de colegas — como “meu pai paga sua faculdade”, ou pichações no banheiro contra cotas ou bolsistas — também tornaram a experiência violenta e cansativa.
Entre 2007 e 2011, não tinha o letramento racial que tenho hoje, e fechar os olhos para algumas questões e dores foi minha forma de resistir naquele espaço. Nas aulas de licenciatura, tivemos espaço para debater e refletir sobre aspectos sociais, como desigualdades. Hoje percebo o quanto um olhar mais crítico sobre a sociedade brasileira e sobre racismo ainda falta na formação de profissionais de áreas de ciências biológicas e exatas — como se esses não fossem temas a serem debatidos por seres humanos e não apenas pelas áreas de humanidades.
Já sobre minha formação, em todas as disciplinas da biologia, aprendi muito com todos os professores e nunca peguei nenhuma dependência ou reprovação. Me formei com média ponderada acima de 8, entre as melhores da turma.
Sua formação está presente no trabalho que você faz hoje? Como?
MARIANA INGLEZ Sim. Sou doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Genética e Biologia Evolutiva pelo Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo, onde também fiz meu mestrado — ambos na área de bioantropologia. Também tive a oportunidade de fazer a etapa sanduíche do meu doutorado na The Ohio State University [nos Estados Unidos]. Todas essas etapas ocorreram graças a bolsas governamentais, como da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior). Assim que me formei, também fui professora de ciências e de biologia em uma escola estadual na periferia de São Paulo.
No mestrado, estudei fluxo gênico e morfologia craniana humana, com experiência em contextos bioarqueológicos — escavações arqueológicas e estudos sobre os primeiros habitantes do continente americano —, orientada pelo professor doutor Walter Neves. Na sequência, fui consultora na região do médio Xingu [na Amazônia], contribuindo com a identificação e o resgate de esqueletos em contextos arqueológicos que seriam impactados pela construção da barragem de Belo Monte . Já entre 2014 e 2018, fui consultora, como bioantropóloga, via Plano das Nações Unidas, para a busca de desaparecidos políticos da ditadura civil-militar [1964-1985] no caso da vala clandestina de Perus [em São Paulo].
No doutorado, expandi meu olhar como bioantropóloga para populações do presente. Estudo transição nutricional e insegurança alimentar em comunidades ribeirinhas amazônicas, região pela qual me apaixonei durante a experiência no Xingu. Olhar para a Amazônia e entender como a vida das pessoas da floresta tem sido alterada, trazendo atenção para a importância de ações voltadas para a alimentação nesse contexto específico, tem sido meu maior objetivo. No último ano, também pude contribuir em uma pesquisa sobre insegurança hídrica na periferia de Belém. Na bioantropologia, olhamos para a nossa espécie, nossa saúde e nossos corpos, com atenção também para os fatoressociais, econômicos e culturais, além das nossas relações com o ambiente. É isso que tenho feito.
Por fim, paralelamente, tenho me dedicado a projetos de divulgação científica e popularização da ciência, como o projeto Evolução para Todes , que cocriei e coordenei com apoio do Instituto Serrapilheira. Também tenho escrito artigos para jornais e revistas e produzido conteúdo para as redes sociais, sempre visando tornar a ciência, minhas áreas de estudo e as pautas socioambientais mais acessíveis e interessantes, especialmente para meninas e mulheres negras.
O que mudou entre a sua expectativa na universidade e a realidade no mercado de trabalho?
MARIANA INGLEZ Quando entrei na universidade, acreditava que minha vida e a da minha família melhorariam mais rápido. Apesar de ser inegável o quanto ascendemos e não passamos mais por privações que já foram diárias no passado, hoje, aos 34 anos, ainda não tenho uma renda estável e fixa, férias, décimo terceiro salário, registro em carteira de trabalho. A carreira acadêmica traz muita insegurança financeira, na verdade. Depender de bolsas de estudo com valores sem reajustes adequados há tantos anos é bem difícil. Gostaria, por exemplo, de poder ajudar mais minha família — minha mãe já está bem cansada e ainda não pode se aposentar aos 62 anos, trabalhando com crianças pequenas —, de ter plano de saúde e ter uma tranquilidade que ainda é privilégio de poucos no Brasil, principalmente olhando para o recorte do qual faço parte, o de mulheres negras.
Qual a maior dificuldade da profissão que você escolheu? E o melhor aspecto?
MARIANA INGLEZ A maior dificuldade é a falta de incentivo e de estabilidade financeira. Durante toda a formação em ciências biológicas, o investimento em trabalhos voluntários, estágios não remunerados, materiais de estudo e para formação é grande e representa uma barreira para que pessoas de classes mais baixas possam seguir e ser bem-sucedidas na carreira. São muitos anos de investimento até algum retorno concreto do ponto de vista financeiro.
O melhor aspecto é de fato fazer o que amo. Sempre amei estar em contato com a natureza, com gente, com histórias. Consegui unir tudo isso como bioantropóloga. Hoje, a Amazônia e as comunidades que participam da minha pesquisa são uma extensão de quem sou. Aprendi e aprendo com as pessoas que colaboram com meu estudo, que me recebem em suas casas, que são generosas e compartilham comigo suas vidas. Sinto que minha pesquisa foi uma visita também à Mariana da infância: pude dar nome a coisas que vivi, como insegurança alimentar, e entender como, “estando às margens”, nas periferias urbanas ou rurais, mulheres, ribeirinhas, negras e periféricas têm muito a ensinar, a partilhar, e precisam de mais atenção em todos os setores.
O que te motiva hoje? Quais são os seus planos para o futuro?
MARIANA INGLEZ Minha maior motivação no momento é terminar minha tese e dar maior visibilidade às causas ribeirinhas, pensando no acesso a alimentos de qualidade e a outros direitos básicos. Quero incentivar e contribuir com o desenvolvimento de projetos e políticas públicas voltadas para contextos específicos, que sejam mais efetivas por respeitarem as particularidades de locais como os que estudo.
Para o futuro, muito além do título de doutora, como pesquisadora no setor público ou privado, quero que meus conhecimentos possam contribuir com [a construção de] uma sociedade menos desigual e socioambientalmente mais justa. Amo me comunicar e criar laços com pessoas e lugares, além de gostar do processo científico em si, que não deveria se restringir apenas às universidades (analisar dados, propor caminhos, propor projetos para solucionar problemas comuns). Quero que seja possível encontrar lugar em instituições que valorizem minhas habilidades e estejam alinhadas com os objetivos de desenvolvimento sustentável e combate às desigualdades e ao racismo ambiental.
O que você diria para alguém que está pensando em trabalhar como bióloga, ou bioantropóloga?
MARIANA INGLEZ Diria que é uma das profissões mais lindas e importantes, mas que infelizmente ainda não é valorizada como deveria no Brasil. Ainda assim, hoje há mais gente lutando para que essas carreiras sejam mais inclusivas e diversas e abarquem pessoas que, como eu, não se imaginam felizes em outra área, mas não vieram de um contexto de privilégios. Tem que gostar de estudar, se dedicar muito e, infelizmente, ainda ser muito resiliente para seguir a carreira acadêmica por aqui. Ainda assim, foi essa a jornada que me permitiu conhecer outros países, o Brasil quase todo e muita coisa linda e muito mais grandiosa do que meus sonhos de infância permitiam.
A Lei de Cotas completa 10 anos em 2023. Como você a avalia?
MARIANA INGLEZ Não consigo imaginar onde eu estaria ou como seria a vida se não tivesse tido a oportunidade que me foi dada a partir dessa lei. A Lei de Cotas para mim foi oportunidade, foi ampliação de horizontes. E é o mínimo que se espera de reparação em um país que, por mais de 300 anos, explorou a mão de obra de pessoas escravizadas para acúmulo de capital econômico e intelectual de poucos.
Faço parte do Coletivo Negro “Bitita”, de discentes do Instituto de Biociências da USP, e, em 2021, conseguimos garantir a implementação de cotas na pós-graduação no Programa de Ecologia. Agora, estamos em movimento para que os demais programas do instituto também tenham políticas de inclusão e de permanência. Não seremos um Estado Democrático enquanto pessoas negras — indígenas, quilombolas, ribeirinhas, pessoas com deficiência, trans — não estiverem presentes, em pé de igualdade, com pessoas brancas em todos os espaços.
Nas ciências biológicas, onde entendemos e defendemos tão bem a biodiversidade, já passou da hora de também nos atentarmos para a falta de diversidade humana entre nossos pares. Todos se beneficiam de uma sociedade mais igualitária, mais justa. Que alívio saber que a Lei de Cotas se renovou por mais 10 anos e que o caminho é sua expansão.