Profissões

‘Ouvia em casa sobre os negros, mas na escola, não’

Mariana Vick12 de novembro de 2023(atualizado 28/12/2023 às 22h12)
Conheça Carol Lima de Carvalho, historiadora pela Universidade do Estado de Santa Catarina e pesquisadora de doutorado na área de narrativas e memórias de mulheres negras 
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Carol Lima de Carvalho é historiadora. Formada na Udesc (Universidade do Estado de Santa Catarina), onde ingressou em 2012, primeiro ano de vigência da Lei de Cotas, fez mestrado na PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) e cursa doutorado na mesma universidade da graduação, focada na trajetória de mulheres negras.

Nascida em Florianópolis, cresceu numa família majoritariamente feminina e negra na capital do estado que “insiste em negar a produção de conhecimento” dessa população, segundo ela. Decidiu ser historiadora por isso: queria entender “as lacunas que havia na minha mente. De ouvir em casa sobre os negros, mas na escola, não”, disse.

Carvalho é a quarta entrevistada da cobertura especial sobre ações afirmativas que o Nexo faz em parceria com o Instituto Ibirapitanga. A iniciativa traz entrevistas com profissionais negros e negras que tenham sido cotistas em universidades ou que de alguma forma tenham sido beneficiados por ações afirmativas. O objetivo é destacar suas trajetórias e o impacto dessas políticas em suas vidas.

Ações afirmativas

Quem : Carol Lima de Carvalho

O quê : Historiadora

Como foi seu percurso até a universidade? Por que escolheu a carreira que escolheu?

CAROL LIMA DE CARVALHO Antes gostaria de me apresentar. Sou a Carol Carvalho. Sou uma mulher negra nascida na cidade de Florianópolis, no Sul do Brasil. Sou bisneta da dona Geninha, neta da dona Ada, da dona Zenair, filha da Sônia Carvalho, irmã da Thais e da Laís e tia e madrinha da Maitê Makena. Sempre gosto de pontuar esse vínculo familiar, feminino e negro na minha trajetória, porque é com elas e por elas que me constituo. Meu percurso e o lugar onde estou hoje são um mundo que elas projetaram e do qual hoje usufruo.

Minha trajetória até a universidade tem muito a ver com essas mulheres, com minha infância e adolescência no Sul, num estado que insiste em negar a produção de conhecimento oriunda de populações negras. Cresci nesse universo e, ao mesmo tempo, numa família que é majoritariamente negra, que me traz elementos sobre as histórias, memórias e narrativas negras na cidade de Florianópolis.

Com 15 anos, já sabia da universidade por conta da minha mãe e das minhas irmãs. Logo decidi que queria fazer o curso de história. A intenção era, principalmente, entender um pouco mais as narrativas, as lacunas que havia na minha mente. De ouvir em casa sobre os negros, mas na escola, não. A ideia era trazer como historiadora todas as histórias, não apenas uma — esse cenário hegemônico que hoje a gente reconhece, que é machista, racista, sexista e oriundo de um processo violento de escravidão e colonialismo. Queria aprender sobre minha história, sobre quem me antecede, e também ter a possibilidade de pensar um mundo melhor pra quem me sucede.

Me apresentei falando da minha bisavó, das minhas avós e da minha mãe porque cada uma delas faz parte do meu percurso na Udesc. Sei que o modo como minha vida foi conduzida — de uma jovem que nunca passou fome, não teve uma história sofrida, teve todas as oportunidades — foi por causa da luta diária delas, porque quem me antecedeu abriu esse caminho. [Minha família] me trouxe a possibilidade de hoje dizer: que hoje vou me tornar doutora em história.

Também me tornei historiadora e professora de história cotista, assim como vou me tornar doutora em história cotista, devido à luta de pessoas que nunca puderam pisar na universidade. Que, se pisaram, não foi para estudar, nem para pensar a produção de conhecimento dentro dela.

Minha escolha pelo curso de história, que hoje vejo como um diferencial, vem também de entender que a produção de conhecimento se dá em diversos lugares, não só na universidade. A universidade precisa aprender isso. Ela aprende muito com o ingresso de estudantes cotistas, porque a gente vem dessas vivências — vivências negras, vivências também quando há cotas sociais. Cada pessoa, trajetória e experiência de vida ensina a universidade.

A educação é um caminho para a emancipação. Cresci aprendendo isso. Minha avó paterna, minha mãe e minha irmã são professoras, e também quis seguir esse caminho, na área da história, para fortalecer essa memória e evidenciar essas narrativas. Tenho isto como missão: pensar em modos plurais de ver, sentir e pensar o mundo a partir das populações negras no Brasil.

Como foi sua vida na universidade como cotista?

CAROL LIMA DE CARVALHO Mencionei na resposta anterior o fato de ter tido uma trajetória marcada por oportunidades. Tive desafios, óbvio, que são oriundos do racismo como estrutura, mas nunca passei fome, nada aconteceu comigo que pudesse me impedir o acesso à escola ou à universidade. Isso não significa que outras pessoas negras não passem por isso.

Mas posso dizer que, em relação às cotas, fiz o vestibular no ano de instituição da lei, em 2012. Fiz todo meu percurso escolar numa escola particular, onde falavam mal das cotas. Era como se aquilo fosse um favor, não um direito. Por isso, fui traçando o ensino médio, principalmente o último ano, com algumas questões muito problemáticas sobre elas, com uma ideia distorcida do que elas significam para nós, a população negra e pobre deste país. Depois de adulta, quando ingressei na universidade, descobri que elas eram um direito. São uma reparação histórica.

Havia uma dificuldade em aceitar isso [na universidade], e tive embates muito fortes. [Me diziam:] “Ah, roubou a vaga, olha, ela é cotista. Ela não estudou o suficiente, não precisou estudar para estar aqui.” Havia olhares. Uma falta de entendimento e um racismo colocado nessas relações.

Passei minha trajetória na universidade no Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros. Depois, na pós-graduação, estive no Centro de Estudos Culturais Africanos e da Diáspora, o Cecafro [na PUC-SP], e atualmente faço parte do Laboratório de Estudos Pós-Coloniais e Decoloniais [na Udesc]. São espaços que me fortaleceram para que eu não desistisse do meu plano, da minha trajetória acadêmica.

Sou cotista na graduação e no doutorado. Estive na PUC-SP quando as cotas foram instituídas lá, mas não era cotista. Quando fui lecionar, já na rede municipal de Florianópolis, também fui cotista. Há cotas para servidores públicos na cidade, o que é uma vitória. Mas aí, sim, tive muitos desafios. De pensarem que esse espaço não é para ti, que não te pertence, que você só está ali por conta de uma política pública.

Vivemos num país desigual e buscamos equidade. Ela precisa ocorrer efetivamente. As ações afirmativas são um caminho para isso. Essas políticas educacionais são fundamentais para a gente romper com o racismo e toda a violência sofrida pela população negra e pobre.

Sua formação está presente no trabalho que você faz hoje? Como?

CAROL LIMA DE CARVALHO Sim. Trabalho como professora de história e historiadora. Tenho formação em licenciatura. Atualmente, estou afastada da sala de aula por conta do doutorado, mas estou exercendo a profissão na chave da academia. Busco trazer uma produção de conhecimento que é acadêmico, como falei, mas também se entrelaça e se articula [com outros conhecimentos] para construir espaços plurais dentro e fora das escolas e universidades.

O que mudou entre sua expectativa na universidade e a realidade no mercado de trabalho?

CAROL LIMA DE CARVALHO Minha trajetória no curso de história foi marcada pela valorização da vida acadêmica. Traçar uma pós-graduação, mestrado e doutorado. Minhas expectativas foram alcançadas nesse sentido. Já quando se pensa no mercado de trabalho para professores no Brasil, essa é uma profissão geralmente sucateada e não valorizada. Há muitas dificuldades de ser professor no Brasil, e ser professor de história também. Na rede pública ou privada, são poucas vagas e não há interesse ou adesão na disciplina.

Qual a maior dificuldade da profissão que você escolheu? E o melhor aspecto?

CAROL LIMA DE CARVALHO Há uma dificuldade no campo da história para a gente que luta por historiografias e epistemologias plurais. Há uma insistência em manter cenários hegemônicos que invisibilizam presenças, protagonismos, narrativas, histórias e memórias negras e indígenas no contexto brasileiro. Essa é a maior dificuldade, além do que mencionei na resposta anterior sobre ser professor no Brasil.

Quanto ao melhor aspecto, gosto muito de estar em sala de aula e em contato com os estudantes. Começamos do sexto ano até o ensino médio, que é uma idade em que a gente consegue ter discussões interessantes. Elas nos fazem pensar: “poxa, podemos ter esperança. Há adolescentes vindo aí com toda força, que podem nos ajudar a manter nossa ideia de um mundo plural e seguro para todas as pessoas”.

Particularmente, também gosto da possibilidade de construir narrativas históricas articuladas com outros campos do conhecimento, como narrativas visuais, narrativas artísticas, que fortalecem a escrita da história do Brasil. As mulheres negras com as quais tenho interlocução nas minhas pesquisas contribuem para uma escrita da história diferente e plural, sobretudo, a história do Brasil, para a gente romper com cenários que nos invisibilizam.

O que te motiva hoje? Quais são os seus planos para o futuro?

CAROL LIMA DE CARVALHO Falei um pouco sobre isso nas perguntas anteriores, mas o que me faz efetivamente levantar da cama é saber que eu, enquanto cotista, posso abrir caminhos e traçar oportunidades, como foram traçadas para mim. Outra motivação é, enquanto historiadora e professora de história, apresentar mundos plurais para quem vem depois de mim. Levar adiante o que foi dito, pensado, articulado e projetado por aqueles e aquelas que me antecedem. Isso é o que me move e me deixa com esperança para seguir na minha carreira, dando aula, com muito orgulho de usufruir de políticas públicas que são resultado de uma luta histórica por reparação. Os planos para o futuro têm a ver com aquilo que eu já mencionei, de construção de mundos possíveis. Quero ser professora universitária, estar articulada também com a rede pública, a educação básica, e me dedicar a pensar um ensino de história plural.

O que você diria para alguém que está pensando em trabalhar como historiador?

CAROL LIMA DE CARVALHO Independentemente do que falarem, do que apresentarem sobre o curso, vá. Conheça, se dedique, se debruce nas leituras. Pense em uma história que não seja apenas de um único grupo racial. E seja um historiador ou historiadora que faça a diferença, que contribua para a gente que luta por uma historiografia e produção de conhecimento plurais.

A Lei de Cotas completa 10 anos em 2023. Como você a avalia?

CAROL LIMA DE CARVALHO Tenho observado [as cotas] ao longo destes anos, tanto como alguém que usufrui da política como alguém que é chamada para estar presente na construção de alguns espaços, como as bancas de heteroidentificação [que avalia a autodeclaração racial de estudantes que ingressam nas universidades via Lei de Cotas].

Percebo que há desafios, principalmente quando se trata do entendimento da política, ou seja, sobre quem efetivamente tem o direito de usufruir a Lei de Cotas. As ações afirmativas também tocam em privilégios. Estes são os desafios nestes 10 anos: lidarmos com fraudadores e também com privilégios que, para a população não negra, são como se estivessem sendo ameaçados.

Outro desafio é mantê-la [a Lei de Cotas]. Temos o racismo como estrutura, as violências, e isso faz com com que muitas pessoas não vejam a importância dessa política educacional e o avanço que ela teve — contribuir para o ingresso de pessoas [na universidade], para concluírem os seus cursos, para conseguirem estar naquele espaço. Precisamos entender que [as cotas] são políticas públicas para contribuir com demandas sociais, e há uma demanda extremamente urgente, que é a reparação histórica. Vejo avanços, vejo esses desafios e faço minha defesa de manter essa política até que efetivamente a gente busque a equidade.

Exemplo de alinhamento

Este conteúdo faz parte da série “Políticas afirmativas e trajetória profissional”, realizada em parceria com o Instituto Ibirapitanga, organização dedicada à defesa de liberdades e ao aprofundamento da democracia no Brasil, com foco em iniciativas pela equidade racial e sistemas alimentares.

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