Profissões

‘Enfermagem sempre está na linha de frente dos desastres’

Mariana Vick15 de junho de 2024(atualizado 15/06/2024 às 21h07)
Foto: Arquivo pessoal
Graziela Viegas, enfermeira no Hospital das Clínicas de Porto Alegre, fala ao ‘Nexo’ sobre as mudanças no trabalho e no cotidiano durante o desastre no Rio Grande do Sul
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Graziela Viegas saiu para o plantão e nunca mais voltou para casa. Foi assim que descreveu ao Nexo o início da rotina que passou a ter desde maio, quando as inundações do desastre que atingiu o Rio Grande do Sul chegaram até sua casa, em Porto Alegre. Pouco antes de a água entrar em seu apartamento, a enfermeira levou os dois filhos e o cachorro para a casa da mãe, onde toda a família (incluindo seu marido) está até hoje.

Mestre em ensino na saúde pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), Viegas trabalha no Hospital das Clínicas de Porto Alegre, no serviço de enfermagem cirúrgica. Afastou-se do trabalho por uma semana depois que perdeu a casa, mas, no retorno, encontrou nele forças para continuar. “A enfermagem sempre está na linha de frente”, disse.

Viegas é a sexta e última entrevistada da cobertura especial que o Nexo faz para dar espaço a profissionais que estão na linha de frente da tragédia no Rio Grande do Sul. A iniciativa promove conversas com representantes de diferentes categorias que contam quais são os desafios de trabalhar neste momento e como o desastre os afetou. Mostra também o que os motiva num cenário de tantas adversidades.

O que te motivou a ser enfermeira?

GRAZIELA VIEGAS Escolhi ser enfermeira porque desde pequena,  segundo minha mãe, gostava de cuidar das pessoas. Na juventude, essa motivação foi aumentando. Fiz técnico de enfermagem ainda adolescente, e concluí com 16 ou 18 anos. Gostei da área da saúde. Confirmei que tinha o gosto por cuidar do próximo e decidi dar sequência aos estudos, fazendo a graduação. 

Quais são os desafios de estar na linha de frente neste momento, atuando na tragédia no Rio Grande do Sul?

GRAZIELA VIEGAS O desafio é tentar se concentrar nas tuas atividades, mesmo sabendo que tu tem um monte de pendências fora do ambiente de trabalho para resolver — lidar com as consequências das enchentes, por exemplo. Às vezes nossas expectativas são negativas, porque não se sabe como será o dia de amanhã, e em outras vezes tentamos ser positivos, porque estamos no ambiente de trabalho — pelo menos a gente tem uma forma de recomeçar, um trabalho para recomeçar do zero. É conflituoso. Tu tenta se concentrar nas tuas atividades, mas tem um mundo lá fora que está girando muito rápido. Tu não sabe o que será o dia de amanhã, então tu tenta viver um dia de cada vez. 

A rotina do hospital também mudou. Não em relação aos atendimentos, mas porque tínhamos poucos profissionais que conseguiam chegar até o ambiente de trabalho. Para chegar até o hospital, muita gente tem que passar pelas principais vias de acesso a Porto Alegre — muitos profissionais moram na região metropolitana de Porto Alegre e não conseguiam chegar ao trabalho porque estavam afetados de alguma forma pela enchente. Alguns profissionais tiveram perda das casas, como eu, e ficaram desalojados. Outros não tinham condução para vir, porque as estradas estavam bloqueadas ou porque havia queda de barreira, ponte. Isso acabou impactando o atendimento no hospital — com a suspensão, por exemplo, de cirurgias eletivas. Também tivemos que pedir a colaboração dos profissionais para que fizessem horas extras. 

Como o desastre afetou seu cotidiano? Tem sido possível separar trabalho e vida pessoal num momento como este? 

GRAZIELA VIEGAS Quando começaram os primeiros sinais de enchente em Porto Alegre, eu estava de plantão. Trabalho à noite. Minha casa não fica próxima do rio, mas as regiões mais próximas já estavam alagando. Saí do plantão e liguei para meu esposo para comunicar que a água estava chegando. Meu condomínio é alto, mas a água estava se aproximando, e naquele momento eu já não conseguia mais voltar para casa. Meu esposo estava em casa, mas eu tinha saído antes, porque suspeitava que a água fosse chegar — na região do Vale do Taquari, onde o rio já estava muito elevado, vi que a coisa estava fora do normal. Estava desproporcional a quantidade de água, e ela ia ter que descer. Nunca tinha havido enchente perto da minha casa, mas, antes de a água chegar, no dia 3 de maio, vendo tudo que estava acontecendo, peguei meus dois filhos, o cachorro e fui para casa da minha mãe, que é onde estou até o momento. Não retornei mais para casa. Só voltei um mês depois para começar a limpar. Meu plantão foi do dia 3 para o dia 4, e no dia 4 a água chegou. 

Foi uma avalanche de emoções, porque meu esposo estava lá, ajudando no resgate. Havia muitos relatos de invasão e saque. A gente estava com receio de ter o apartamento saqueado, porque moramos no térreo, mas também havia um acúmulo de água na residência. E com que cabeça a gente vai trabalhar, né? Nessa semana, quando houve o pico da enchente, não fui trabalhar. Relatei que não tinha condições psicológicas de trabalhar, porque não sabia quando meu esposo ia sair dali — ele continuou ajudando nos resgates. Muitas pessoas deixaram para sair de casa quando não tinham mais condições humanas de viver dentro dos apartamentos, por falta de água e luz. Nesse momento a gente fica tensa. Não sabia quando eu ia ver meu esposo, se ele estava realmente bem, porque não tinha sinal de internet — o sinal de telefonia, 4G, 5G, estava muito precário na região. E aí a gente fica tensa, sem condições de trabalhar, porque não sabe do dia de amanhã, não sabe o que te espera quando a água passar. 

Depois de uma semana, quando eu retornei para trabalhar, vi que o trabalho estava me dando força. Havia ali gente em condições precárias de saúde, e eu tinha saúde para poder trabalhar e recomeçar. Foi o trabalho que foi me dando forças para poder retornar e levar as coisas adiante. 

O que mais te surpreendeu nas últimas semanas? Há algo que a sra. nunca havia visto nos seus anos de trabalho? 

GRAZIELA VIEGAS O que mais me surpreendeu foi a rede de apoio que tive. No primeiro dia [depois de sair de casa], perguntei para duas amigas minhas se alguém tinha uma camiseta branca para me emprestar, porque tinha saído de casa só com duas mudas. Disse que só precisava de uma camiseta branca para trabalhar, mas elas se reuniram, pegaram roupas, compraram roupas íntimas para mim, para o meu esposo, para os meus dois filhos e trouxeram três malas enormes. Depois, mais pessoas foram nos ajudando com doações. Esse acolhimento, essa ajuda, esse apoio ao próximo me surpreenderam. Sou só gratidão por toda ajuda que tenho recebido até o momento. Depois das roupas, ganhei materiais escolares para meus filhos, que retornaram aos estudos depois de terem se afastado das aulas. A escola do meu filho mais velho tinha sido alagada. A doação das pessoas, a sensibilidade… Sou bem grata por isso.

O que tem te motivado agora? Qual é a importância dos profissionais de enfermagem neste momento? 

GRAZIELA VIEGAS A enfermagem sempre é essencial. Quem trabalha na área da saúde sabe disso. É sempre a enfermagem que está na linha de frente. Tivemos uma valorização na pandemia, mas depois a pandemia acabou e nos esqueceram. Quando começou o desastre [no Rio Grande do Sul], quem é que estava ali para salvar os pacientes, por exemplo? Tivemos hospitais que foram completamente alagados. Quem ajudou na retirada dos pacientes? Foi a enfermagem. A enfermagem sempre vai estar do lado dos pacientes, do início até o fim da vida. Até nos momentos mais críticos, como nas enchentes e nas pandemias. Mas, quando passam esses momentos, a gente deixa de ser valorizado, tanto pelo salário quanto pela sobrecarga de trabalho. Falta por parte da sociedade o reconhecimento da nossa profissão — não somente nos momentos críticos. 

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