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Yasmin Thayná

Zezé Motta: uma mulher que abriu caminhos

12 de junho de 2017

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Com algumas dezenas de filmes em sua trajetória profissional, Zezé interpretou personagens que ajudam a contar algumas de nossas histórias e, com elas, nos conduzem a perceber um Brasil que desejamos ter no futuro já apontado no passado

A mim não cabe dizer se a Zezé Motta foi ou é uma das atrizes mais marcantes do cinema nacional. É só assistir sua filmografia que as conclusões chegarão de imediato. Aliás, se eu pudesse dar uma dica para você, seria a de estudar o cinema brasileiro a partir dos filmes que Zezé foi protagonista, coadjuvante ou fez participações especiais – essas situações breves em que ela, literalmente, “rouba a cena” do filme com brilhantismo, coisa que ela sabe fazer de olhos fechados. Com algumas dezenas de filmes em sua trajetória profissional, Zezé interpretou personagens que ajudam a contar algumas de nossas histórias e, com elas, nos conduzem a perceber um Brasil que desejamos ter no futuro já apontado no passado.

É interessante o fato de que Zezé Motta tem o seu trabalho como atriz ainda mais reconhecido mundialmente com o lançamento do filme “Xica da Silva”, de Cacá Diegues, no qual ela é a própria Xica, protagonista do filme. Ainda que existam muitas questões, inclusive, no que diz respeito a objetificação sexual da personagem e ao modo que o roteiro do filme resolve contar a história de uma das mulheres negras mais poderosas do Brasil, que foi a Xica da Silva, Zezé viveu há quase quarenta anos atrás uma história marcante e extremamente urgente sobre um Brasil colonial escravocrata e cruel com a população negra. Realidade que, infelizmente, ainda se reflete nos dias atuais com fortes resquícios desse passado onde a estrutura social do país, se olharmos a base, ainda é formada esmagadoramente por pessoas negras.

É extremamente relevante ver negros e negras no cinema em qualquer relação humana que não seja servindo, roubando ou tomando chicotada de brancos. É por isso que abro um sorriso do tamanho do mundo quando vejo Zezé na estação de trem de Marechal Hermes, zona norte do Rio de Janeiro, falando de fé e amor, numa breve sequência do filme “A força de Xangô”. E também em “Quilombo” de Cacá Diegues, quando temos a oportunidade de ver a atriz como uma rainha, uma guerreira, a Dandara de Palmares, inspiração de força e determinação para muitas mulheres negras brasileiras. Estrategista como em “Xica da Silva”, no filme “Quilombo” temos a chance de ver uma Dandara que se mostra a força motriz que tornou possível a Palmares se manter erguido por tantos anos. Não por acaso, é, até hoje, um dos maiores símbolos de resistência negra do país.

Para cada filme, Zezé protagonizou uma Dandara diferente e nos mostrou as tantas possibilidades que existem: ela já foi uma rainha negra no teatro, ela é cantora e compositora, foi uma das criadoras do Centro Brasileiro de Informação e Documentação do Artista Negro, o Cidan, entre outras realizações. Ela é, também, uma atriz e tem um dos sorrisos mais belos já vistos na televisão. Sua trajetória é um sonho experimental, é um suspiro, um alívio para quem buscou a vida inteira se ver fora das páginas policiais dos jornais. Zezé Motta é um escândalo por ter mostrado, sem fazer qualquer discurso panfletário, que é extremamente relevante e inovador (infelizmente, inovador) ser negro e estar no cinema em papéis fora dos estereótipos.

Zezé fez tudo isso sem perder a sua ancestralidade, quebrando os tetos de vidro impostos para artistas negros. E com a sua força feminina, a força que Dandara teve para enfrentar as batalhas de Palmares. E, aqui, não me refiro a força desumanizadora que enquadra pessoas negras como corpos constituídos de ferro, pessoa que não chora, não se deprime, que não ama, que é desalmado. Quando falo de sua força, falo da força como um elemento criativo, de conexão, que abre caminhos e mistura coisas resultando em outras possibilidades de ser representado.

Yasmin Thaynáé cineasta, diretora e fundadora da Afroflix, curadora da Flupp (Festa Literária das Periferias) e pesquisadora de audiovisual no ITS-Rio (Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro). Dirigiu, nos últimos meses, “Kbela, o filme”, uma experiência sobre ser mulher e tornar-se negra, “Batalhas”, sobre a primeira vez que teve um espetáculo de funk no Teatro Municipal do Rio de Janeiro e a série Afrotranscendence. Para segui-la no Twitter: @yasmin_thayna

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