Entrevista

‘Questão racial não é moda, e deve permanecer além da comoção’

Guilherme Henrique

13 de junho de 2020(atualizado 28/12/2023 às 12h59)

Coalizão de 150 grupos do movimento negro lança manifesto e cobra espaço para a discussão sobre racismo nas frentes democráticas. O ‘Nexo’ conversou com Maria José de Menezes, do Núcleo de Consciência Negra da USP, sobre a iniciativa

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FOTO: IAN CHEIBUB/REUTERS

Jovens negros segurando cartazes e com punho cerrado durante protesto no Rio de Janeiro

Jovens negros durante protesto no Rio de Janeiro

Manifestos pró-democracia se multiplicaram no cenário político do Brasil em 2020. Os textos pedem a união entre partidos e seus representantes contra a crise instaurada no país governado por Jair Bolsonaro em meio à pandemia do pelo novo coronavírus. Em comum, mostram a articulação de atores de variados grupos da sociedade civil. Reúnem não só políticos como artistas, intelectuais, juristas e ativistas, entre outros.

Para lideranças do movimento negro, no entanto, essas iniciativas não contemplam a questão racial, um ponto central para as discussões sobre o futuro da democracia no país. Por isso, a Coalizão Negra por Direitos, que reúne mais de 150 grupos, além de outras centenas de pessoas, lançou um manifesto no domingo (14) intituladoEnquanto houver Racismo, não haverá Democracia!.

O texto afirma queneste momento em que diferentes setores se unem em defesa da democracia, contra o fascismo, o autoritarismo e pelo fim do governo Bolsonaro, é de suma importância considerar o racismo como assunto central.

Para entender a importância do manifesto e como seus ideais serão colocados em prática, o Nexo conversou com Maria José de Menezes, que faz parte do Núcleo de Consciência Negra da USP (Universidade de São Paulo) e é membro executiva da Marcha Nacional de Mulheres Negras.

Qual a importância de se ter um manifesto pró-democracia liderado por entidades do movimento negro nesse momento?

Maria José de Menezes O manifesto é essencial não só pela conjuntura, mas pelo histórico do país. O Brasil, a pretensa nação, sua economia, foi gerada por negros, sujeitos escravizados trazidos de África. É preciso relembrar isso sempre. É um histórico de muito pressão, que só se perpetua. Se nós, negros, sempre estivermos em crise, ela só aumenta durante a pandemia do coronavírus. Esse manifesto, neste momento, é mais uma estratégia do movimento negro para dizer basta a tanta opressão, nesse círculo de mortes instituído pelo poder público. E, claro, há um chamado para que aliados repensem a democracia que querem, ou nosso país será sempre um projeto.​

Qual a avaliação que o movimento negro faz dos manifestos pró-democracia lançados até aqui? Eles contemplam a questão racial?

Maria José de Menezes Não. Por isso estamos fazendo um manifesto. Muitos desses manifestos, que se pautam pela democracia, por questões da classe trabalhadora, não enxergam a população negra. População que é maioria nesse país e sofre todos os tipos de opressão. Não há como dialogar sobre trabalho precarizado sem falar sobre a questão racial. Não se pode falar sobre IDH [Índice de Desenvolvimento Humano], falta de saneamento básico, ausência de habitação sem falar disso no impacto do povo negro. Alguns manifestos ainda são pensados com a estrutura racista de manutenção de privilégios. É importante que essas outras manifestações, majoritariamente brancas, tenham atenção para esse tipo de organização. ​

Qual é o papel a ser desempenhado por lideranças democráticas, especialmente brancas, na inclusão da pauta do racismo? O que deve ser feito?

Maria José de Menezes A cobrança que nós fazemos no movimento negro é que não veja a população negra como uma pauta deslocada de outras necessidades emergentes do país. A pauta racial é central. Enquanto não se tem esse cuidado, não há como falar de um projeto democrático. Não há como pessoas brancas falarem de necropolítica sem ouvir os negros e negras. Não basta termos esse momento de maior visibilidade e depois tudo ser esquecido. Esse assunto não é uma moda que pode ir embora na próxima semana, e o nosso chamado é que isso permaneça para além da comoção.​

Há um debate sobre o racismo estrutural atualmente. Qual a participação dos brancos nessa discussão? Eles se veem como parte do problema?

Maria José de Menezes Há uma dificuldade. No campo conservador é um desastre, porque eles sabem dos privilégios que têm e não querem perder isso. No campo progressista a situação que nós temos é uma estrutura nos espaços de poder muito definida: homem, branco e de classe média. Claro, há uma diferença na formação da base de cada um desses pólos. Mas, se olharmos no topo, a estrutura da esquerda é conservadora, não se conseguiu uma ruptura. Não adianta haver uma massa de negros e negras fortalecendo partidos se não houver a partilha de poder. ​

A discriminação racial no Brasil chegou ao seu limite? Esse é um ponto de inflexão na maneira como tratamos a situação no país?

Maria José de Menezes Sem dúvida, é uma questão que está escancarada. A sociedade brasileira é muito violenta e há uma naturalização disso em diversas frentes, com a conivência do Estado em diversos setores, especialmente no Judiciário. Nós vivemos uma crise. A pobreza, que já é muito grande, vai avançar ainda mais, especialmente para a população negra. Esse contexto pode gerar um caos social e muita repressão por parte do Estado, seja na esfera federal, estadual ou municipal. Agora, como nós vamos resolver isso vai depender da reação que todos tiverem para dizer basta, inclusive os brancos.​

O manifesto conecta a pauta antirracista a temas como distribuição de renda, preservação do meio ambiente e o respeito às comunidades tradicionais. Como essas pautas estão interligadas e de que maneira o racismo afeta cada uma delas?

Maria José de Menezes O manifesto questiona onde nós estamos, nosso território, o espaço periférico. São esses territórios que mostram a maior ausência de políticas públicas. É o avanço contra os quilombos nas regiões das matas. É o avanço da precarização do trabalho, que afeta principalmente o jovem negro. São cobranças para que o discurso seja prático com quem paga imposto.​

Você acredita que a reação antirracista no Brasil, por parte dos brancos, teria começado sem a morte de George Floyd nos EUA? Há uma dependência cultural do Brasil nesse sentido?

Maria José de Menezes Veja, não posso dizer que todos os brancos são racistas e não se mobilizam. Nós temos aliados, e se não for assim tudo estaria perdido. Mas, sim, o Brasil se pauta muito pelo o que acontece nos EUA e nos países da Europa. Esse é um momento que a mobilização internacional cutucou a população branca do Brasil. Muitos tiveram que se mexer para deixar o discurso de lado e incorporar a pauta antirracista de fato. Agora, isso é lamentável, porque nós estamos há muito tempo na rua mostrando todos os males sofridos pela violência policial, o descaso com nossas demandas, as maneiras de exclusão que sofremos das mais diversas formas. Como disse antes, espero que essa mobilização seja verdadeira, contínua e firme para mudar o Brasil.​

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