Explicado

O protagonismo e as urgências da infância no século 21

Isadora Rupp

30 de julho de 2023(atualizado 06/02/2024 às 10h57)

Legislações exemplares e acordos firmados por líderes de todo mundo ainda não deram conta de resolver os problemas que atingem crianças e adolescentes

O Nexo depende de você para financiar seu trabalho e seguir produzindo um jornalismo de qualidade, no qual se pode confiar.Conheça nossos planos de assinatura.Junte-se ao Nexo! Seu apoio é fundamental.

Neste texto:

  • O QUE é infância
  • QUANDO inventaram a infância
  • COMO a infância ganhou protagonismo
  • QUEM defende os direitos da infância
  • QUAIS as urgências da infância hoje
  • POR QUE a infância é um período importante
  • EM ASPAS
  • VÁ MAIS FUNDO

Temas

Compartilhe

FOTO: MARGARET WEIR/PEXEL

Imagem mostra a silhueta de duas crianças brincando ao ar livre com céu enterdecendo

Ciência indica que infância é um período crucial para o desenvolvimento saudável

Sancionado em julho de 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente, conhecido como ECA, determina que é papel do Estado, da família e da sociedade o cuidado e a proteção da criança.

Embora a legislação brasileira seja considerada um exemplo mundial na proteção à infância, sua aplicação ainda é falha e desigual. O século 21 traz novos desafios que as políticas públicas precisam abarcar, como a influência da tecnologia, ao mesmo tempo em que os mais novos adquirem autonomia e protagonismo inéditos diante de fenômenos como a crise climática.

O Nexo elenca as urgências da infância contemporânea e explica por que esse é um período único, cuja vivência afeta toda a sociedade.

O QUE é infância

A infância é compreendida como a etapa inicial da vida. É enxergada como uma preparação para a vida adulta, mas com especificidades: por causa da condição biopsíquica de desenvolvimento, as crianças estão em um patamar de maior fragilidade do que adultos, e, por isso, necessitam de proteção.

Segundo a Convenção Sobre os Direitos da Criança , adotada pela Assembleia Geral da ONU em novembro de 1989, considera-se criança todo o ser humano com menos de 18 anos de idade.

No Brasil, o ECA define que criança é toda pessoa com até 12 anos incompletos. Dos 12 aos 18 anos, a pessoa é considerada adolescente.

A infância é dividida da seguinte forma:

  • De 0 aos 6 anos: primeira infância . Há um crescimento incremental e rápido, com vários marcos de desenvolvimento psíquico e físico.
  • Dos 7 aos 12 anos: segunda infância . Período de equilíbrio e crescimento uniforme.
  • Dos 12 aos 18 anos: adolescência . Final da fase de desenvolvimento físico. Há mudanças corporais bruscas pela mudança hormonal.

Estudos mostram que as vivências da infância afetam o desenvolvimento social, emocional, físico e psíquico dos indivíduos, e que as condições de cuidado às quais a criança é submetida também acentuam desigualdades .

O conhecimento que se fortaleceu na comunidade científica nos últimos 30 anos frisa que a primeira infância é a fase fundamental para a formação do indivíduo.

Esse entendimento já fora tratado anteriormente por nomes da psicanálise como Sigmund Freud (1853-1939), Melanie Klein (1882-1960) e Lev Vygotsky (1896-1934), que direcionaram parte de seus estudos para tratar de desenvolvimento infantil.

Uma primeira infância bem vivida permite que a criança desenvolva ao máximo suas potencialidades, o que gera um círculo virtuoso para a sociedade: melhora a educação, a saúde pública, a segurança e a economia, pois contribui para quebrar ciclos de pobreza.

90%

das conexões cerebrais são formadas até os seis anos de idade. É quando o cérebro mais precisa de estímulos sociais, intelectuais, afetivos e físicos

Isso inclui a integração de políticas públicas de educação, saúde e assistência social. Entre as recomendações da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, que se dedica à causa da primeira infância, está a ampliação da oferta de creches para crianças de zero a três anos para garantia de cuidado adequado. O marco legal para a primeira infância, lei sancionada em 2016 pela então presidente Dilma Rousseff (PT), dispõe especificamente sobre as políticas para a primeira infância, em uma espécie de atualização do ECA.

42%

das crianças entre zero a três anos no Brasil precisam de creche

Um ambiente familiar e escolar amoroso e acolhedor é outro elemento chave. Idealmente, a criança deve ter acesso a estímulos, interações positivas, leituras, brincadeiras, estar em um ambiente de não-violência e de afeto.

Com isso, a chance da criança consolidar as capacidades aprendidas e levá-las para outras fases da vida são maiores do que crianças que não tiveram esse ambiente – o processo de aprendizagem, por exemplo, é três vezes maior.

Isso não significa que, futuramente, a criança exposta a um ambiente de negligência não consiga recuperar a potência, mas essa recuperação é mais lenta e demanda maior investimento, tanto do Estado como pessoal.

QUANDO inventaram a infância

O conceito de infância como entendemos hoje não existia antes de revoluções burguesas que ocorreram no século 18 – como a francesa e a industrial. Com altos índices de mortalidade infantil, a atenção aos primeiros anos de vida não era um foco, e as crianças, sem proteção ou direitos, eram enxergadas como “mini-adultos”.

Segundo o pesquisador de historiografia infantil Eduardo Silveira Netto Nunes disse ao Nexo , a partir do século 18 essa ideia começou a mudar. E o período da infância passa a ser enxergado como essencial para o desenvolvimento e como uma fase única e lúdica da vida.

FOTO: FLICKR/CREATIVE COMMONS

Duas crianças brincam ao ar livre em um balanço feito com pneu. A menina está sentada de costas e o menino está ao fundo, em pé

Crianças brincam ao ar livre em um balanço feito com pneu

Historiadores como o medievalista francês Philippe Ariès falam que a infância teria aparecido junto com a emergência da chamada sociedade burguesa a partir do século 18. Um dos livros de Ariès, “História Social da Criança e da Família”, é considerado até hoje base para estudos relacionados à infância.

O porém da teoria do francês, segundo Nunes, é que ele incorpora uma visão da infância ideal: com a família nuclear formada por pai, mãe e filhos, com cuidados e condições materiais dignas.

De acordo com o historiador, a infância da sociedade burguesa e dos países ocidentais não pode ser o único parâmetro: é necessário pensar nas infâncias de cada época e com diferentes realidades sociais , que não necessariamente se adequam ao padrão defendido pelo francês.

O desenvolvimento da pedagogia como ciência e o da psicologia em especial, no final do século 19, foi outro fato histórico que alavancou a ideia de infância. São áreas que passam a levar muito em consideração a experiência da vida familiar e íntima na construção da ideia de paternidade, maternidade e filiação.

Ações da medicina que possibilitaram a redução da mortalidade infantil, como a criação de maternidades, clínicas de saúde infantil e manuais de condutas de cuidados também influenciaram nessa mudança de paradigma sobre a infância. O período passou a ser olhado com mais cuidado.

50%

foi a redução global na taxa de mortalidade de crianças de zero a cinco anos desde o ano 2000, segundo a OMS

No Brasil, a ideia da criança como sujeito de direitos – ou seja, de seres com discernimento sobre seus desejos e com os mesmos direitos civis dos adultos, mas com proteção e atenção especial por não terem formado completamente seus aspectos psíquicos e físicos – veio apenas com a Constituição de 1988.

FOTO: ARQUIVO/AG. SENADO

Aprovação da Constituição Federal de 1988

Parlamentares comemoram a aprovação da Constituição Federal, em 22 de setembro de 1988

Legalmente, esse é o marco que representa o momento em que a criança de fato foi colocada como prioridade, disse ao Nexo a defensora pública e professora Elisa Cruz, docente de direito civil da Escola de Direito do Rio de Janeiro da FGV (Fundação Getulio Vargas). Antes disso, tínhamos pessoas que eram filhos ou filhas de outras pessoas, e menores, um termo com carga negativa usado para crianças e adolescentes em situação de abandono e delinquência.

Leis sobre a infância

Lei Mello Mattos (1926)

Estabeleceu o chamado “direito para as crianças pobres” e também fixou a menoridade em 18 anos , válida até hoje. O aparato normativo permitia a intervenção por meio do Estado brasileiro a crianças em condições de vulnerabilidade. Ao longo do século 20, a legislação passou por mudanças, mas o foco continuou apenas nas famílias pobres, inclusive com a retirada da criança da família e colocação em internatos.

Criação da Febem (1964)

A ideia de tutela do Estado culminou na criação da Funabem [hoje Fundação Casa], logo no início da ditadura militar brasileira (1964-1985). A ideia era criar um sistema para oferecer políticas públicas de assistência para o que se chamava de “criança em situação irregular”, e de recuperação de jovens em conflito com a lei. Na prática, os locais ficaram marcados por um histórico de violência .

Constituição Federal (1988)

O documento colocou a criança e a infância dentro do modelo de direitos humanos que já vinha sendo debatido mundialmente pela Organização das Nações Unidas. O artigo 227 coloca a criança como prioridade absoluta, e fala que é dever do Estado, da família e de toda a sociedade garantir os direitos de crianças e adolescentes.

Convenção sobre os Direitos da Criança (1989)

Aprovada pela Assembleia Geral da ONU em novembro de 1989 e ratificada por 196 países, a convenção é considerada o instrumento legal mais abrangente em favor da promoção da infância, e impactou legislações em todo o mundo. A elaboração do documento foi iniciada em 1977 e contou com a participação ativa do Brasil nas discussões, que bebeu da fonte do que já vinha sendo discutido na ONU para elaborar as propostas da Assembleia Nacional Constituinte.

Marco Legal da Primeira Infância (2016)

Sancionada pela então presidente Dilma Rousseff (PT) em 2016, a lei estabelece diretrizes e princípios para a formulação de políticas públicas específicas para a primeira infância, com olhar voltado para a importância do cuidado nesta fase e os impactos futuros. A lei também prevê a participação de crianças na formulação das políticas públicas e com assento em conselhos municipais.

COMO a infância ganhou protagonismo

As mudanças sociais e econômicas ao longo do século 19 contribuíram para que a infância fosse analisada com maior atenção – tanto é que as legislações voltadas a essa fase surgiram justamente neste período. Além da criança ser vista como sujeito de direitos, ela ganhou protagonismo como indivíduo.

FOTO: HUY-HUNG-TRINH/UNSPLASH 16.05.2019

Bonecos coloridos e peças estão lado a lado em mercado de brinquedos na Tailândia

Mercado de brinquedos na Tailândia

Ao mesmo tempo, houve superproteção e atenção excessiva aos desejos das crianças, que são algumas das críticas a essa centralidade do infantil na sociedade, que é mais preponderante em algumas culturas e países do que em outros.

Para a psicanalista Priscilla Santos, que é doutoranda sobre o tema em psicologia clínica no Instituto de Psicologia da USP, a crítica é plausível. Porém, precisa ser contextualizada a partir de outras relações sociais, como o excesso de exposição ao consumo, por exemplo, que afeta as crianças e seus cuidadores.

Segundo Santos, a dimensão da infância deve passar por uma noção privada – da sustentação e cuidado parental – e da relação social da criança.Até o final do século 20 a criança era colocada, no âmbito familiar, como secundária: pelo fato de terem menos vivência, elas não saberiam processar certos temas.

No geral, a base educacional se centrava na rigidez: quem manda é o adulto e haverá punições se regras não forem cumpridas. Em outro extremo, a permissividade, com ausência de normas: quem manda é a criança.

Hoje, há um meio do caminho possível que vem sendo propagado por especialistas em infância: a parentalidade positiva , que rejeita o autoritarismo e a permissividade excessiva e parte do pressuposto de que a criança consegue ter autonomia para participar de certas decisões, considerando os limites da sua idade e contexto familiar.

FOTO: PROSTOOLEH/FREEPIK

Mulher e criança mexendo em um jardim. Uma mulher está ajoelhada, com uma luva branca com detalhes em vermelho, segurando um vaso de planta preto, com uma pequena planta dentro. Ao seu lado, está uma criança pequena. Ao lado, um canteiro com terra e algumas plantas

Mulher e criança mexendo em jardim

Há maior valorização dos sentimentos da criança, escuta e comunicação. Qualquer tipo de castigo, seja físico ou psicológico, está fora de cogitação. A relação pautada na compreensão e na conversa gera benefícios de curto e longo prazo:

  • Desenvolve a autoestima e a confiança da criança
  • Promove a aprendizagem
  • Melhora a relação entre pais e filhos
  • A criança se adapta melhor a novas rotinas e contextos
  • Reduz comportamentos indesejáveis
  • A criança se sente mais admirada e amada , o que contribui para a sua saúde mental , inclusive na vida adulta.

CEO da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, Mariana Luz lembra que ainda há no Brasil e no mundo a sensação de que os direitos das crianças não são tão relevantes pelo fato de não votarem, não consumirem ou se expressarem de forma clara – um entendimento equivocado, de acordo com ela. Mudar essa ideia é necessário para haver responsabilidade de toda a sociedade sobre a infância.

QUEM defende os direitos da infância

A defesa dos direitos da infância e o cuidado com as crianças ocorre por meio de uma parceria entre o Estado, a família e a sociedade, algo expresso na Constituição de 1988 e no ECA. Não existe prevalência de um sobre o outro. O que existe, no plano jurídico, é que todos são responsáveis por zelar por uma infância saudável.

Por exemplo: se há sinais de que uma criança que mora em um condomínio está sendo submetida à violência, a responsabilidade social – dos vizinhos ou outros parentes, neste caso – é de comunicar essa violação dos direitos da criança a um agente estatal. E aí esse agente precisa intervir.

O ECA possibilitou a formação de uma rede de proteção de crianças e adolescentes no Brasil, que integra os órgãos municipais, delegacias, conselho tutelar, Judiciário, ONGs e outros organismos articulados.

FOTO: PEDRO FRANÇA/AGÊNCIA SENADO

Livros sobre o ECA sobre mesa de juíza de Vara Cível e da Família em Goiás

Livros sobre o ECA sobre mesa de juíza de Vara Cível e da Família em Goiás

Além disso, por ser um período de desenvolvimento físico e cognitivo, há um olhar mais atento do Estado. É por isso que existem alguns controles, como vacinação e matrícula na escola obrigatórias a partir dos quatro anos (ano inicial da educação pré-escolar).

Os direitos da infância também incluem a autonomia da criança e a necessidade de ela ser ouvida em situações como a destituição do poder familiar. O Judiciário faz uma análise minuciosa para definir se os pais não conseguem exercer a maternidade e paternidade. Se eles chegam ao entendimento que os pais são incapazes de cuidar da criança, ela entra no Sistema Nacional de Adoção do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) para adoção .

Segundo o ECA, a partir dos 12 anos, a criança nesta situação precisa ser ouvida obrigatoriamente. Apesar da lei determinar a idade, o entendimento jurídico atual é de que é recomendável que a criança seja ouvida sempre – o que não envolve apenas a fala, mas a análise especializada de suas atitudes e comportamentos. Para a defensora pública Elisa Cruz, é impossível garantir os direitos da criança sem ouvi-la – isso retira dela a condição de humanidade.

FOTO: GUILLAUME DE GERMAIN /UNSPLASH

Criança corre sozinha em rua vazia

Criança corre sozinha em rua vazia

Apesar de o Estatuto da Criança e do Adolescente ser uma legislação considerada referência e exemplar para o mundo, os maiores desafios da infância passam pela priorização, de fato, das crianças e adolescentes, e do cumprimento do que versa a lei. Cruz cita problemas como o atual modelo de abrigamento de crianças e de adoção no Brasil – que segundo ela necessita de aprimoramento – e o trabalho infantil .

No Brasil, como regra geral, o trabalho é proibido para quem ainda não completou 16 anos, e permitido a partir dos 14 como aprendiz. De janeiro a abril de 2023, o Ministério do Trabalho e Emprego resgatou 702 crianças de trabalho infantil no Brasil.

Segundo a OIT (Organização Internacional do Trabalho), a pandemia de covid-19 agravou o problema no mundo. A proteção social também teve piora nos índices pelo terceiro ano consecutivo: 50 milhões de crianças e adolescentes no mundo em 2023 não têm acesso a benefícios de proteção essenciais.

160 milhões

de crianças a adolescentes foram submetidas a trabalho infantil no mundo em 2020

10 milhões

de crianças e adolescentes são vítimas de escravidão no mundo

No Brasil, os meninos são os mais atingidos pelo problema: 66% dos trabalhadores infantis. Entre as 1,7 milhão de crianças que trabalham no país, 66,1% são pretas ou pardas. Já as meninas são as maiores vítimas da violência sexual. Segundo dados de 2023 do Anuário Brasileiro de Segurança Pública do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, entre os 73.024 boletins de ocorrência de estupro no Brasil registrados em 2022, 61,4% tinham até 13 anos. A maioria, 86%, são meninas, o que coloca o estupro como um problema de infância no país.

Violência sexual

Gráfico mostra estupros e estupros de vulnerável de 2011 a 2022.

A desigualdade social é outro problema crônico, agravado na primeira infância por problemas como desnutrição, exposição à violência e insegurança alimentar. A matrícula na creche é uma das políticas públicas que garantem o mínimo de segurança social e retiram a criança, ainda que parcialmente, da vulnerabilidade.

FOTO: PILAR OLIVARES/REUTERS – 29.AGO.2022

Foto mostra, vista de cima, uma menina sentada no sofá, comendo comida em um prato lilás.

Criança faz refeição com comida encontrada pela mãe em lixeira, no Rio de Janeiro

Estudo da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, de 2020, mostra que apenas 26% das crianças de 0 a 3 anos das famílias mais pobres estavam matriculadas na creche. Em rendas mais altas, essa porcentagem salta para 55%.

Em 2022, o Supremo Tribunal Federal entendeu que o poder público tem a obrigação de garantir vagas em creches e pré-escolas para crianças com até cinco anos de idade. Segundo a decisão da Corte, o direito, que já é constitucional, não assegura apenas a proteção à criança, mas garante a permanência da mãe no mercado de trabalho.

68,6 milhões

é a estimativa da população de crianças e adolescentes no Brasil, segundo dados do Censo 2022

Para os especialistas em infância, o enfrentamento a problemas tão graves que afetam as crianças passa por boas legislações – algo que o Brasil tem com o ECA – mas sobretudo com o compromisso dos governos na criação de políticas públicas integradas e investimento orçamentário adequado para atender essa população.

QUAIS as urgências da infância hoje

De uma maneira geral, garantir e efetivar a prioridade absoluta do artigo 277 da Constituição Federal é o principal desafio para a infância no Brasil. Junto a essa necessidade, outros problemas contemporâneos já são uma nova urgência. Uma delas são as mudanças climáticas.

O futuro incerto das novas gerações, que cresce sob aquecimento global acelerado e inação dos líderes globais, tem feito crianças e adolescentes tomarem protagonismo no movimento climático.Em vários países, os mais jovens lideram processos contra governos na Justiça, cobrando autoridades pelas decisões do presente que ameaçam seu futuro.

Uma das ativistas mais vocais, a sueca Greta Thunberg, hoje com 20 anos, começou a sua militância na adolescência pedindo mudanças concretas em relação aos problemas ambientais. Liderou em 2019 uma greve global das escolas pelo clima e foi eleita a pessoa do ano da revista Time.

FOTO: ANDREJ IVANOV/REUTERS – 27.09.2019

À esquerda, Greta Thunberg está sentada, olhando para Justin Trudeau (à direita), que conversa com ela, também sentado.

A ativista sueca Greta Thunberg em encontro com Justin Trudeau no Canadá

Relatório da Unicef, órgão da ONU para a infância, alerta que é urgente priorizar as crianças e adolescentes no debate sobre a crise climática, que gera com frequência cada vez maior fenômenos como ondas de calor extremo , queimadas e chuvas intensas.

40 milhões

de meninos e meninas no Brasil estão expostos a mais de um risco climático ou ambiental, segundo a Unicef

Esses problemas também impactam em uma gama de outros direitos de crianças e adolescentes, disse ao Nexo JP Amaral, gerente de Meio Ambiente e Clima do Instituto Alana, organização que se dedica à infância.

Um exemplo recente, afirma Amaral, são as chuvas que atingiram São Sebastião, no litoral paulista, em fevereiro. A tragédia evitável que deixou mais de 50 mortos, expõe a crise do clima, das moradias precárias e do crescimento desordenado das cidades.Em razão dos desastres, as aulas foram suspensas, e crianças ficaram sem ir à escola, o que fere mais um de seus direitos.

FOTO: PREFEITURA DE SÃO SEBASTIÃO/DIVULGAÇÃO

Homem resgata bebê com ajuda de bombeiro em São Sebastião

Homem resgata bebê com ajuda de bombeiro em São Sebastião

É uma realidade também enfrentada por crianças em comunidades afetadas pela violência. Entre janeiro e junho de 2023, a região metropolitana do Rio de Janeiro registrou pelo menos 460 tiroteios perto de escolas . Colégios com frequência são fechados quando há operações policiais nessas região.

Outra forma de violência, o aumento de ataques propagados dentro de escolas no Brasil entre 2022 e 2023 é outro fator que colocou a proteção da infância como urgência para governo e sociedade no país. O cenário impôs ainda mais desafios para o ambiente escolar e tem pautado temas complexos como a regulação das redes sociais .

FOTO: UNSPLASH/IGOR-STARKOV

Criança de costas brinca com um tablet. Ela usa várias tranças no cabelo e está com os dedos na tela

Criança brinca com um tablet

Também no âmbito da tecnologia, outra questão que afeta a infância contemporânea é o uso exacerbado de telas com o maior acesso a smartphones, tablets e computadores, que impactam no desenvolvimento cognitivo e aumentam a probabilidade de a criança apresentar sintomas de transtornos como o TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção) e ter problemas de sono. Estudo de 2019 da Universidade de Alberta, do Canadá, mostra que crianças com menos de cinco anos que ficam em telas mais de duas horas por dia têm chance quintuplicada de desenvolver dificuldades de concentração .

Embora ainda não exista um consenso sobre o uso na infância e dentro das escolas , o que se sabe é que a Organização Mundial da Saúde recomenda limites no tempo que crianças ficam expostas a telas. O uso também deve ser restrito e supervisionado ao longo da infância.

A regulamentação das redes sociais e das ferramentas de inteligência artificial é uma necessidade urgente, afirmou Amaral ao Nexo , para garantir que as tecnologias não fomentem violações aos direitos das crianças. Sem controle dos conteúdos, elas podem ser expostas a materiais violentos e inadequados.A adoção generalizada da inteligência artificial também pode ameaçar o futuro de pessoas que hoje vivem sua infância devido ao impacto no mundo do trabalho, por exemplo.

POR QUE a infância é um período importante

Estudos acadêmicos e de entidades ligadas à infância apontam que o período é crucial para o desenvolvimento cognitivo, social e emocional do indivíduo, com reflexos que se estendem para a vida toda.

O afeto e a educação na infância, principalmente na fase dos zero aos seis anos, geram um desenvolvimento saudável e, por consequência, um impacto social positivo. Por outro lado, as desigualdades vivenciadas neste período tendem a se aprofundar no futuro.

FOTO: LIANE METZLER /UNSPLASH

Mão de bebê sobre a de um adulto em imagem preta e branca

Mão de bebê sobre a de um adulto

Em 2015, trabalho realizado por uma equipe de pesquisadores do Boston Children’s Hospital, nos Estados Unidos, analisou o desenvolvimento cerebral de 136 crianças com dois anos de idade que passaram pelo menos um ano em instituições de amparo.

Os neurocientistas as acompanharam até os 12 anos de idade e compararam com outro grupo de crianças criado por suas famílias. As que sofreram negligência na infância apresentaram alterações em uma parte do cérebro envolvida no processamento das emoções, o que impacta o raciocínio e o controle emocional.

Outro estudo, realizado pelo The Child Trauma Academy, também dos EUA, fez comparação por meio de imagens do cérebro de dois bebês: o da direita, menor e com estruturas mais obscuras, é de um bebê que viveu com uma família abusiva. À esquerda, o cérebro maior é de uma criança criada com uma família amorosa e feliz.

No mesmo trabalho há imagens de tomografia de duas crianças de três anos de idade. À esquerda, saudável. À direita, uma criança que sofreu severa negligência: o cérebro é menor do que a média e o desenvolvimento do córtex, anormal.

FOTO: DIVULGAÇÃO /FUNDAÇÃO MARIA CECILIA SOUTO VIDIGAL

Imagem em preto e branco de ressonância de dois cérebros de criança em estudo do Child Trauma

Imagem de dois cérebros de criança em estudo do Child Trauma

Segundo os pesquisadores, os impactos ocorrem pelo fato de a criança ser submetida com frequência a uma condição estressante, o que aumenta a produção do hormônio cortisol.

JP Amaral, do Instituto Alana, lembra que estudos sobre o tema não são uma ciência exata: não é regra que as vulnerabilidades da infância tenham reflexos para sempre. Mas existe uma probabilidade e uma tendência maior.

EM ASPAS

“É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda a forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”

Artigo 227

da Constituição Federal de 1988

“Em vez de criar filhos que se saiam ‘bem’ apesar da sua infância, podemos criar filhos que se tornem pessoas extraordinárias por causa de sua infância”

L. R. Knost

escritora especialista em infância, autora de livros sobre educação sem violência

“Quando uma criança passa fome, é problema de todo mundo”

Carolina Maria de Jesus

escritora, autora de livros como “O Quarto de Despejo”. Mulher negra, foi mãe solo de três crianças

“A natureza é o território essencial da infância, e o brincar é a sua linguagem essencial. Uma criança que brinca livremente na natureza está na plena realização de sua potência”

Daniel Becker

pediatra e sanitarista, pioneiro da pediatria integral no Brasil, prática que amplia o olhar e o cuidado sobre a criança

“O verdadeiro caráter de uma sociedade é revelado pela forma como ele trata as suas crianças”

Nelson Mandela

ex-presidente da África do Sul e ganhador do Prêmio Nobel da Paz

“É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança”

Provérbio africano

sobre o que é preciso para garantir uma infância plena e segura

VÁ MAIS FUNDO

  • Biblioteca da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal com artigos e estudos sobre a primeira infância
  • “História Social da Criança e da Família”, livro de Philippe Ariès considerado base para estudos da infância
  • Estatuto da Criança e do Adolescente, lei brasileira de julho de 1990 sobre proteção integral à criança e ao adolescente
  • “Muito Além do Peso”, documentário da Marinha Farinha Filmes e do Instituto Alana sobre obesidade infantil e o risco do consumo de ultraprocessados
  • “Machuca”, filme chileno que se passa em 1973, duro período da ditadura militar no Chile, e traz o contexto e desigualdades do regime sob a ótica da infância de dois garotos de realidades distintas que vivem em Santiago
  • “Projeto Flórida”, filme de 2017 que retrata a desigualdade social gritante em Orlando, nos Estados Unidos. Centrada na história de uma menina de seis anos, o longa coloca as duas dimensões da cidade turística, conhecida pela perspectiva da felicidade e da magia, mas onde vivem crianças em situação de vulnerabilidade
  • Acervo do Instituto Alana com publicações, livros e documentários realizados pela organização, que se dedica à infância
  • Convenção dos Direitos das Crianças , instrumento de direitos humanos adotado em 1989 na Assembleia Geral da ONU e ratificado por 196 países
  • Canal no Youtube do Núcleo de Ciência pela Infância , que reúne conhecimento científico sobre o tema

NEWSLETTER GRATUITA

Nexo | Hoje

Enviada à noite de segunda a sexta-feira com os fatos mais importantes do dia

Este site é protegido por reCAPTCHA e a Política de Privacidade e os Termos de Serviço Google se aplicam.

Gráficos

nos eixos

O melhor em dados e gráficos selecionados por nosso time de infografia para você

Este site é protegido por reCAPTCHA e a Política de Privacidade e os Termos de Serviço Google se aplicam.

Navegue por temas