O que é ciência cidadã. E como ela contribui para a preservação de espécies
Guilherme Eler
21 de janeiro de 2018(atualizado 09/01/2025 às 08h22)Engajamento da população em atividades de pesquisa pode fornecer dados importantes sobre a biodiversidade local
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O principal banco de dados colaborativo sobre pássaros brasileiros recebeu mais de 900 imagens por dia em 2017
A ideia de que não é necessário ser cientista para fazer ciência costuma resumir o propósito de uma iniciativa de ciência cidadã. O movimento vem crescendo no Brasil nos últimos anos e reafirma a importância de qualquer pessoa com interesse por ciência, ainda que sem experiência formal, ser estimulada a colocar sua curiosidade a serviço da pesquisa científica.
Acredita-se que o termo tenha aparecido pela primeira vez em 1989 , descrevendo o trabalho de 225 voluntários norte-americanos que coletaram amostras para uma campanha sobre chuva ácida feita pela National Audubon Society, ONG de conservação sediada em Nova York.
Além de aproximar a sociedade civil de questões ambientais e ampliar a produção do conhecimento, tal forma de fazer ciência pode significar avanços importantes. É graças ao trabalho de amadores, por exemplo, que dezenas de novos candidatos a exoplanetas são descobertos todos os dias, espécies animais são descritas com a ajuda de relatos no Facebook e até novos antibióticos podem ser testados , graças a uma sugestão vinda da comunidade leiga.
Os principais impactos dos projetos de ciência cidadã, porém, costumam aparecer quando o cidadão cientista sai da cadeira e vai a campo, assumindo o protagonismo da coleta de informações. E a tecnologia tem papel fundamental nesse processo. Após captados in loco, uma foto ou vídeo amador podem ser compartilhados nas redes sociais ou até mesmo servir para alimentar bancos de dados taxonômicos on-line. A taxonomia é o ramo da biologia que estuda a classificação dos seres vivos, descrevendo a diversidade a partir das relações evolutivas entre diferentes espécies.
No Brasil, destacam-se as plataformas Táxeus e Biofaces, utilizadas para registros de aves, mamíferos e outros exemplares de fauna; além de eBird e WikiAves, populares entre os observadores de pássaros.
Totalmente colaborativos, essas ferramentas on-line têm em comum o fato de disporem de um amplo acervo sobre fauna nativa, com fotos, mapas de incidência e sons originais. Para serem aceitos pela comunidade, os registros precisam ser submetidos primeiro à análise de especialistas e/ou membros mais experientes.
Contando com mais de 28 mil usuários, a WikiAves recebeu, só no ano passado, cerca de 900 novas fotos e 62 sons de pássaros por dia. Em seu banco de pássaros brasileiros, há registros de 1880 variedades diferentes. Segundo estimativa do Comitê Brasileiro de Registros Ornitólogos (CBRO), o total de espécies de aves do Brasil é de 1919 .
Após coletados por amadores, dados sobre espécies podem servir para alimentar bancos colaborativos
Informações importantes como localidade, data e hora do avistamento permitem que tais registros se tornem dados científicos valiosos para pesquisadores – e que sirvam, inclusive, de argumento para verificar dados.
Foi a partir da análise de registros do WikiAves, por exemplo, que biólogos da PUC-Rio redefiniram recentemente a área de ocorrência de cinco espécies de pássaros. Pertencentes ao gênero Drymophila e conhecidos popularmente como choquinhas, eles costumam ter como habitat uma área da Mata Atlântica litorânea muito mais ampla do que indicava cem anos de literatura especializada em ornitologia. Uma dessas espécies chega a ocupar uma área 183 quilômetros maior do que registros sobre o tema acusavam.
Outra pesquisa do mesmo gênero, também feita em 2016, baseou-se em dados coletados por leigos para descobrir que o caneleiro-enxofre ( Casiornis fuscus) , espécie de pássaro endêmica do Nordeste brasileiro e tida como sedentária, possui, na verdade, comportamento migratório.
Atualizações desse tipo permitem calcular a variação do tamanho das populações e fazer levantamentos locais mais precisos sobre migrações, contribuindo para a preservação da espécie.
Apesar de ser a modalidade de apreciação de fauna mais comum, a maioria das atividades de observação de aves tende a acontecer nos mesmo lugares, como reservas ambientais e parques.
Eventuais restrições de acesso para iniciativas independentes, entretanto, podem reduzir o potencial do que a ciência cidadã é capaz de gerar às pesquisas ecológicas no Brasil.
Foi pensando em uma maneira de estender a observação para áreas que normalmente não recebem a atenção de observadores que Eduardo Alexandrino, pesquisador da Esalq (Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, da USP), idealizou seu projeto de pós-doutorado “Eu vi uma ave usando pulseiras!?”. Criada em 2016, a atividade consiste na observação de aves anilhadas, distribuídas em remanescentes florestais dentro de áreas agrícolas particulares.
Tais áreas, localizadas nas cidades de Piracicaba, Rio Claro e Corumbataí, no interior de São Paulo, são mantidas em sigilo até que o voluntário esteja ciente do protocolo da pesquisa e apto a ir a campo. Uma vez credenciados para a tarefa, os observadores são instruídos a anotar a localização de cada ave “marcada” que avistarem na mata.
Além disso, são coletadas também informações como espécie, cor da anilha (cada indivíduo tem uma sequência específica) e local de observação, por meio do aplicativo desenvolvido para o projeto .
Depois de avaliados por pesquisadores, os dados das expedições são disponibilizados na plataforma Táxeus. Sabendo-se o tamanho da área de vida de cada espécie, é possível avaliar sua participação na dispersão de sementes e reflorestamento da paisagem agrícola.
“Os donos das propriedades não veem muito valor nesses remanescentes florestais. Afinal, nossa legislação só os obriga a proteger um percentual de mata dentro de sua propriedade. Eles não ligam se esses ambientes comportam uma elevada diversidade de aves, com alto potencial para manter esta mata e as vizinhas vivas por vários anos”, disse Alexandrino, em entrevista aoNexo.
Segundo o pesquisador, o total de espécies ocorrentes nas três regiões monitoradas ultrapassa 200, sendo que mais de 500 indivíduos já foram marcados.
Parcerias desse tipo são interessantes justamente porque certas informações não seriam produzidas sem ações independentes. “Hoje, dentro da academia, para que se coletem vários dados da mesma ave por anos consecutivos, é preciso conseguir uma equipe grande, mantida com bolsas [de pesquisa], que geralmente duram poucos anos. Depois desse tempo, se o pesquisador conseguiu coletar e analisar tudo o que queria, o projeto acaba”, comenta. “Então, alavancar a participação dos observadores de aves dentro dos projetos ornitológicos é uma forma de que esse legado de coleta de dados e observação continue.”
É comum que projetos de ciência cidadã envolvam uma grande escala espacial, ou grande período. Analisar uma espécie migratória ou o comportamento de uma comunidade regional demanda um número considerável de idas a campo para coleta de dados.
Em ambientes marinhos, as expedições costumam envolver infraestrutura e ainda maior mobilização de pesquisadores. Abrir essa possibilidade para o público explorá-lo por si só é visto como forma de aumentar a abrangência da coleta de informações, ao mesmo tempo em que se economizam recursos.
O grupo de Facebook do projeto “Onde estão as baleias e golfinhos?” existe há quatro anos e é um exemplo de esforço nesse sentido. Ele já recebeu 277 relatos de animais marinhos no Rio de Janeiro, segundo estima Liliane Lodi, doutora em biologia marinha pela Universidade Federal Fluminense e coordenadora da iniciativa.
Amadores saem em mar aberto para a avistagem de cetáceos e aves próximo a Ilhabela-SP
“Os animais marinhos com que trabalhamos, chamados de megafauna carismática, podem ocorrer próximo a costa ou muito longe dela – e muitas vezes em épocas e locais de acesso dificílimo”, explica Guilherme Kodja, fundador da ONG Iniciativa Pro Mar, do Projeto Megafauna Marinha do Brasil e que desde 2006 realiza palestras e minicursos de foto-identificação de raias mantas (Manta birostris).
“Como o mar é sempre surpreendente e nosso litoral é privilegiado, há muitos encontros com cetáceos, tubarões, raias, tartarugas ou grandes peixes em locais onde os passeios de barco são mais comuns. Isso faz com que, de posse de um smartphone (acho que 90% das pessoas têm um), sejam coletadas imagens importantes desse encontros.”
Estima-se atualmente que apenas 1,57% da área marinha brasileira seja protegida por Unidades de Conservação , nome dado pelo Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza a áreas naturais que, por conta de suas características, são passíveis de proteção especial. O total, que abranje uma área de 55.199 km² de costa, é dividido em 166 Unidades de Conservação diferentes.
Para treinar o público nos protocolos científicos para coleta de dados, os projetos costumam contar com cursos presenciais e materiais de ensino à distância. Uma atividade do projeto Mantas do Brasil, focado na observação de raias manta, oferece videoaulas para que mergulhadores amadores aprendam como registrar a espécie. Quem é aprovado com 70% de acertos em um questionário on-line recebe o certificado de Cidadão Cientista.
“Certamente esses dados podem integrar relatórios de unidades de conservação e de órgãos públicos relacionados ao meio ambiente, e podem compor uma série temporal que permitirá aos gestores entender as modificações que estão ocorrendo no ambiente e nos seres vivos ao longo do tempo”, diz Natalia Ghilardi-Lopes, responsável pelo Grupo de pesquisa em Ciência Cidadã da Universidade Federal do ABC.
Para a pesquisadora, o envolvimento com esforços de ciência cidadã pode despertar nos participantes também a sensibilização para problema ambientais e iniciativas independentes de conservação. “A educação ambiental também é um efeito importante, podendo levar os cidadãos não só a compreenderem melhor os seres vivos e suas relações com o ambiente, mas também a se engajarem na conservação destas espécies. Esses benefícios não são facilmente mensuráveis a curto prazo, mas podem ser relevantes para o futuro.”
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