As suspeitas de que a Abin age a favor de Flávio Bolsonaro
Isabela Cruz
13 de dezembro de 2020(atualizado 28/12/2023 às 22h59)Denunciado criminalmente pela prática de rachadinhas, filho do presidente teria recebido relatórios da agência de inteligência para contra-atacar a Receita Federal
Alexandre Ramagem e Augusto Heleno durante cerimônia em Brasília
Denunciado à Justiça no início de outubro de 2020 sob acusação de liderar um esquema de rachadinhas , o senador Flávio Bolsonaro, filho mais velho do presidente da República, teve a ajuda da Abin (Agência Brasileira de Inteligência), dirigida por Alexandre Ramagem, para se defender judicialmente, segundo reportagem publicada na sexta-feira (11) pela revista Época.
Em dois relatórios enviados a Flávio em setembro,a Abin teria traçado uma estratégia , com o uso da CGU (Controladoria-Geral da União) e da AGU (Advocacia-Geral da União), para que o senador tivesse acesso a documentos que pudessem embasar um pedido de anulação da investigação das rachadinhas. O documento é explícito em sua finalidade: “Defender FB [Flávio Bolsonaro] no caso Alerj [Assembleia do Rio] demonstrando a nulidade processual resultante de acessos imotivados aos dados fiscais de FB”.
Os advogados de Flávio tentam demonstrar que o filho do presidente teve seus dados escrutinados ilegalmente por servidores da Receita Federal. Para a defesa, isso invalidaria o relatório que o Fisco produziu sobre operações suspeitas do político — documento que motivou o início das investigações contra o senador.
O esquema da rachadinha teria acontecido quando Flávio era deputado estadual no Rio. Também denunciado no caso, o ex-assessor Fabrício Queiroz foi preso em junho de 2020. Menos de um mês depois, passou para prisão domiciliar . Se a denúncia do Ministério Público for aceita integralmente pela Justiça, os dois responderão pelos crimes de organização criminosa, peculato e lavagem de dinheiro.
O GSI (Gabinete de Segurança Institucional), responsável pela Abin, negou que os documentos tenham sido produzidos. Nota da pasta, comandada pelo general da reserva Augusto Heleno, diz que a revista Época“insiste” em “ agir contra instituições de Estado ”. A defesa de Flávio, porém, confirmou a autenticidade dos relatórios à revista. O senador do partido Republicanos nega que tenha participado de esquema de rachadinhas e não havia se manifestado publicamente, até este domingo (13), sobre as revelações a respeito da agência de inteligência.
Diversos partidos acionaram a Procuradoria-Geral da República para a investigação do caso. Também houve pedidos ao Conselho de Ética do Senado para que Flávio seja afastado de seu cargo da mesa diretora do Senado, assim como à Câmara, para que convoque Augusto Heleno a prestar esclarecimentos. A Rede pediu ao Supremo Tribunal Federal, entre outras medidas, que determine o afastamento de Heleno e Alexandre Ramagem , diretor da Abin, de seus cargos.
Outra reportagem da revista Época já havia revelado que, no dia 25 de agosto de 2020, a defesa de Flávio teve uma reunião no gabinete presidencial para apresentar ao presidente da República, a Augusto Heleno e a Ramagem as suspeitas de que houve atuação irregular por parte dos servidores da Receita.
Pela legislação, a Abin é responsável , entre outras atividades, por assessorar o Presidente da República com informações, proteger conhecimentos sensíveis, relativos aos interesses e à segurança do Estado e da sociedade, avaliar as ameaças, internas e externas, à ordem constitucional.
Na ocasião, Heleno afirmou que não houve atuação da Inteligência do governo após o encontro. Mas a nova reportagem da revista Época revela que Ramagem chegou a fazer uma cópia dos documentos levantados pela defesa de Flávio. O governo também teria orientado a defesa para que apresentasse o pedido de apuração à própria Receita.
A Procuradoria-Geral da República instaurou em meados de novembro procedimento preliminar para colher mais informações sobre o episódio. Em tese, o caso pode se desdobrar num inquérito contra Bolsonaro e, posteriormente, numa ação penal.O Ministério Público junto ao TCU (Tribunal de Contas da União) também pediu que o tribunal apurasse o suposto uso de órgãos de inteligência por Bolsonaro e sua família.
No primeiro relatório, a Abin sugere a substituição dos “postos”, numa possível referência a servidores da Receita. Diz que essa recomendação já havia sido feita antes: “se a sugestão de 2019 tivesse sido adotada, nada disso estaria acontecendo, todos os envolvidos teriam sido trocados com pouca repercussão em processo interno na RFB [Receita Federal do Brasil]!”, consta no documento.
Como opção alternativa, a Abin recomenda que a defesa de Flávio solicite da empresa pública Serpro [Serviço Federal de Processamento de Dados] uma“apuração especial” que demonstraria que servidores da Receita acessaram dados do senador sem motivo, numa atuação que a agência chama de “arapongagem”. A Abin então traça a estratégia que deve ser seguida pela defesa de Flávio:
“Em resumo, ao invés da advogada ajuizar ação privada, será a União que assim o fará, através da AGU e CGU — ambos órgãos sob comando do Executivo”, diz expressamente o documento da Abin.
No outro relatório, a agência afirma que “a dra. Juliet [provável referência à advogada de Flávio, Juliana Bierrenbach] deve visitar o Tostes, tomar um cafezinho e informar que ajuizará a ação demandando o acesso agora exigido”. O documento chama a ação de “diversionária”.
Segundo a Abin, “existe possibilidade de que os registros sejam ou já estejam sendo adulterados”, enquanto a Receita, chefiada por José Tostes Neto, resiste em entregar os dados solicitados. O texto chega a falar numa “atual estrutura criminosa” e cita pessoas que integrariam o grupo. Entre elas, o próprio Tostes e o controlador-geral da União, Gilberto Waller Júnior.
Num dos relatórios, a agência sugere que Bolsonaro exonere o corregedor-geral e o substitua por um policial federal.“Neste caso, basta ao 01 comandar a troca de Waller por outro CGU [controlador-geral da União] isento. Por exemplo, um ex-PF, de preferência um ex-corregedor da PF de sua confiança”. O diretor da Abin, Ramagem, também é policial federal.
Ramagem é delegado de carreira da Polícia Federal. Na campanha eleitoral de 2018, ele assumiu a chefia da segurança de Bolsonaro depois que o então candidato do PSL levou uma facada, em setembro, durante um evento de campanha em Juiz de Fora, Minas Gerais.
Com Bolsonaro já eleito, o delegado se tornou assessor especial da Secretaria de Governo da Presidência, a convite do então ministro Santos Cruz, general da reserva. Santos Cruz acabou demitido em junho de 2019, em meio a uma disputa envolvendo o vereador do Rio Carlos Bolsonaro, filho do presidente. Ramagem assumiu a diretoria da Abin logo em seguida.
No final de abril de 2020, Bolsonaro nomeou o delegado, que tem a confiança dos filhos do presidente, para o comando da Polícia Federal. A exoneração do então diretor-geral da instituição, Maurício Valeixo, tinha levado o então ministro da Justiça Sergio Moro a deixar o governo.
O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo, porém, suspendeu a nova nomeação. Moraes viu desvio de finalidade de Bolsonaro no uso de seu poder para nomear e exonerar o comando da PF. A decisão levou em conta, entre outros fatores, a declaração do próprio presidente de que desejava “todo dia ter um relatório do que aconteceu [na PF], em especial nas últimas vinte e quatro horas”.“[A Abin] não é órgão de inteligência da Presidência da República”, afirmou o ministro.
Bolsonaro então escolheu Rolando Alexandre de Souza para o comando da PF. Ramagem permaneceu na Abin. Atualmente, o presidente é alvo de um inquérito no Supremo que investiga suspeitas de interferência política na Polícia Federal, a partir de acusações de Sergio Moro, ex-ministro da Justiça e ex-juiz da Lava Jato.
Em setembro de 2019, com base em informações de bastidores, a revista Veja revelou que Bolsonaro criou em sigilo um núcleo na Abin responsável por avisá-lo sobre investigações contra aliados e familiares. Ainda segundo a revista, o presidente acreditava que era alvo de opositores ligados ao PT na Polícia Federal e na Receita Federal. O caso não teve desdobramentos.
Em fevereiro de 2019, uma reportagem do jornal O Estado de S. Paulo revelou que escritórios da Abin em diferentes cidades foram mobilizados para monitorar o Sínodo da Amazônia , uma assembleia de bispos convocada pela Igreja Católica, no Vaticano, para discutir em outubro daquele ano questões envolvendo a região e seus povos.
Augusto Heleno confirmou preocupação com o Sínodo, mas negou que a agência estivesse investigando a ação de religiosos. Após o aumento de queimadas na região amazônica ganhar repercussão internacional, Bolsonaro contradisse seu ministro e confirmou que a Abin estava monitorando o Sínodo porque “tem muita influência política lá, sim”.
DILMA ROUSSEFF
Agentes da Abin foram presos em 2013, acusados de investigar o então governador de Pernambuco, Eduardo Campos. Também houve suspeitas, não confirmadas, de que membros da agência grampearam o ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso, o então vice-presidente Michel Temer e membros da força-tarefa da Operação Lava Jato.
LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
Em 2009, a Abin foi foco da CPI dos grampos. Agentes da entidade foram acusados de participar, indevidamente, de investigações judiciais da Operação Satiagraha. Em 2011, a operação foi anulada pelo Superior Tribunal de Justiça, pelo entendimento de que a participação da Abin havia comprometido as investigações.
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO
Em 2002, a Justiça Federal do Rio de Janeiro condenou um agente da Abin pela instalação de um grampo em linhas telefônicas da presidência do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social). Mas não ficou comprovada a participação da chefia da Abin nesse caso. A agência também levantou a ficha do jornalista Andrei Meirelles, da revista IstoÉ, o que incluía sua atividade política em partidos de esquerda. Chamado a uma CPI no Congresso, o então chefe da Abin, general Cardoso, afirmou que pelo menos um setor da agência vinha agindo sem controle.
O Nexo conversou com um constitucionalista e um cientista político sobre a atuação da Abin no caso Flávio Bolsonaro.
É necessário haver uma investigação dos fatos, tanto pela Procuradoria-Geral da República quanto pelo Parlamento brasileiro, com uma CPI [Comissão Parlamentar de Inquérito]. O que foi noticiado é extremamente grave.
A Abin não pode operar na defesa privada do presidente e, muito menos, na defesa privada do filho do presidente. O interesse da União em apurar eventual conduta ilícita dos agentes da Receita tampouco é suficiente para legitimar a atuação da Abin. A agência não é órgão de consultoria jurídica para ficar orientando como CGU [Controladoria-Geral da União] ou AGU [Advocacia-Geral da União] devem agir para apurar essas suspeitas.
Tudo ainda tem de ser investigado. Mas fazendo uma análise, em tese, é possível afirmar que uma atuação da Abin em favor de interesses privados do filho do presidente pode caracterizar ato de improbidade ou mesmo ilícitos penais dos servidores e políticos envolvidos no caso. A depender do que for apurado nas investigações, podem se configurar, para os envolvidos, crimes como organização criminosa, obstrução de investigação e prevaricação [ atuação de agente público contra disposição expressa de lei para satisfazer interesse pessoal].
No caso do presidente da República e do ministro [general Augusto Heleno, que comanda o GSI], se eles tiveram participação nesse suposto uso da Abin para fins particulares, haveria também os crimes de responsabilidade [que dão base para processos de impeachment].
A ausência de regulamentação clara das operações de inteligência dificulta o controle externo das ações do Executivo pelo Legislativo, com a inoperante Comissão Mista de Controle de Atividades de Inteligência, e pelo Judiciário. A falta de definição objetiva do que é segurança nacional [o que justificaria a atuação do sistema de Inteligência] também dá margem para que abusos aconteçam. Os governos se aproveitam disso. Enquanto o Congresso não melhorar essa regulamentação, as tentativas de uso indevido dos órgãos de inteligência vão continuar.
No caso do governo Bolsonaro, a situação se agrava pelo próprio perfil do presidente, que revela uma incompreensão dos limites de atuação de órgãos de inteligência em democracias e pouco apreço pelas regras de controle democrático.
Saudoso dos tempos em que órgãos de inteligência eram usados contra a própria população, o governo atual tenta usar esses órgãos tanto para a produção de relatórios sobre servidores públicos, como foi o caso do dossiê [sobre servidores antifascistas] da Seopi [vinculada ao Ministério da Justiça], quanto para produzir relatórios para orientar a defesa de filho do presidente em caso criminal. Houve também o imbróglio envolvendo a Polícia Federal , que resultou na demissão do ministro da Justiça da época, ex-juiz Sergio Moro. O episódio revelou uma tentativa de controlar as ações da PF.
Estes três casos demonstram que há no governo atual um claro agravamento dos problemas que decorrem do vácuo regulatório. Há um efetivo aparelhamento da estrutura do governo para a proteção de interesses particulares, sem qualquer relação com a proteção da segurança nacional.
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