Expresso

Os entraves da CPI da covid. E o alcance das comissões

Fernanda Boldrin

02 de março de 2021(atualizado 28/12/2023 às 22h59)

Oposição tenta apurar atuação do governo Bolsonaro na pandemia, mas presidente do Senado classifica investigação como ‘contraproducente’

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FOTO: MARCOS OLIVEIRA/AGÊNCIA SENADO – 02.MAR.2021

O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), durante sessão deliberativa

O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), durante sessão deliberativa

Em meio ao pior momento da pandemia no país, com recordes de mortes diárias, falta de leitos de UTI e escassez de vacinas, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), disse na segunda-feira (1º) que seria “contraproducente” instalar uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) para investigar a atuação do governo na crise do coronavírus.

“No momento oportuno eu vou avaliar a CPI da Saúde, como outros requerimentos que existem no Senado. No entanto, nós temos hoje um obstáculo operacional, que é o Senado Federal com limitação de funcionamento”, disse Pacheco ao jornal O Estado de S.Paulo, citando o funcionamento remoto do plenário e a paralisação de diversas comissões na pandemia. “Cogitar a instalação de uma CPI agora com essas limitações seria algo contraproducente, porque não teríamos condição de fazê-la funcionar”, afirmou.

No início de fevereiro, o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) protocolou um requerimento pedindo a abertura de uma CPI para apurar “as ações e omissões do governo federal no enfrentamento da pandemia de covid-19 no Brasil e, em especial, do agravamento da crise sanitária no Amazonas com a ausência de oxigênio para os pacientes internados”.

Segundo a assessoria do parlamentar, o pedido já conta com a assinatura de outros 30 senadores, mais do que o mínimo de 27 assinaturas necessárias para a abertura de uma CPI no Senado. Cabe a Pacheco decidir se instaura a comissão. O pedido até o momento está parado em suas mãos.

O presidente do Senado foi eleito para comandar a Casa em 1º de fevereiro com o apoio do presidente Jair Bolsonaro. Desde quando articulava sua candidatura ao cargo, ele já sinaliza que atuaria para evitar a abertura de uma CPI que pudesse prejudicar o governo, segundo o jornal O Estado de S.Paulo.

O pedido e os argumentos contra e a favor

Uma comissão parlamentar de inquérito é um instrumento por meio do qual congressistas podem investigar um fato de interesse público e com relevância na ordem constitucional, legal, econômica ou social do país.

No caso do requerimento da CPI da covid, Randolfe Rodrigues argumenta que o governo Bolsonaro ignorou de forma sistemática as recomendações científicas, criou entraves à compra de vacinas, deixou de assegurar um estoque suficiente de agulhas para imunizar a população e não agiu para evitar a crise de falta de oxigênio em Manaus quando foi informado de que os estoques haviam atingido nível crítico.

“Com o recrudescimento da covid-19 em dezembro de 2020 e janeiro de 2021, as omissões e ações erráticas do governo federal não podem mais passar incólumes ao devido controle do Poder Legislativo”, escreveu Randolfe no requerimento de abertura da CPI.

Em entrevista também ao jornal O Estado de S.Paulo, o senador Tasso Jereissati (PSDB-PE) disse que a abertura de uma CPI é necessária para frear a maneira como Bolsonaro tem lidado com a covid-19. O saldo da comissão, segundo o tucano, deveria ser o encaminhamento de uma denúncia ao Ministério Público. “Primeiro, há crime contra a saúde pública , isso é claro. Segundo, há crime contra a federação, porque [Bolsonaro] está conclamando a população a fazer o contrário do decreto de um governador do Estado e ainda ameaçando governadores que fizerem isso”, disse ele.

Em meio à pressão de parlamentares pela abertura de uma CPI, senadores aliados ao governo têm sustentado que o momento não é adequado, numa linha parecida com a de Pacheco. “ Agora estamos no meio da pandemia , cuidando da pandemia”, disse na terça-feira (2) à revista Época o líder do governo no Congresso, senador Eduardo Gomes (MDB-TO). Ele também reforçou o argumento do presidente do Senado de que o funcionamento remoto do Congresso seria um empecilho para a instalação da CPI.

O poder e o alcance de uma CPI da covid

Segundo o cientista político e professor da USP José Álvaro Moisés, a abertura de comissões do tipo faz parte da função de fiscalização que cabe ao Legislativo. “As comissões parlamentares de inquérito têm um papel extremamente importante, que corresponde à função de fiscalização, controle e monitoramento que cabe ao Legislativo fazer em relação ao Executivo. Nesse caso, o governo federal está falhando, cometendo erros e omissões no enfrentamento da questão da pandemia, está provocando mortes. Cabe ao parlamento investigar isso. A não instalação da comissão equivaleria a uma perda de papel fundamental do Parlamento”, disse Moisés ao Nexo .

A abertura da comissão tem sido defendida por parlamentares justamente porque sua instauração confere ao Congresso uma série de prerrogativas. Uma CPI tem poderes de autoridades judiciais, o que significa que os parlamentares podem coletar provas, convocar testemunhas e, ao final, fazer um pedido formal de investigação contra suspeitos ao Ministério Público Federal. A comissão também pode propor alterações em leis e em políticas públicas.

Atualmente, o ministro da Saúde, general da ativa Eduardo Pazuello, é alvo de um inquérito da Polícia Federal aberto com a autorização do Supremo. Essa investigação apura a atuação de Pazuello na crise do Amazonas. O nome de Bolsonaro, por sua vez, consta apenas em procedimentos preliminares abertos pelo procurador-geral da República, Augusto Aras.

A oposição tenta, paralelamente, emplacar um processo de impeachment contra Bolsonaro por crime de responsabilidade. Os opositores veem a CPI da covid-19 como um caminho a fim de criar um ambiente político propício para o impedimento. Mas para que algo avance é necessário que o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL) aceite um pedido. Por ora, não há sinais de que o deputado, líder do centrão e eleito para o cargo em 1º de fevereiro também com o apoio do presidente, tenha intenção de levar um processo adiante.

O panorama recente das CPIs no Congresso

A pressão de senadores para a instalação de uma CPI da covid ocorre após um ano de paralisação dos colegiados por causa da covid-19.

Uma das comissões parlamentares de inquérito que ganhou maior repercussão na atual legislatura é a CPI mista das Fake News . Composta por deputados e senadores, ela foi instalada em 2019 com o objetivo de investigar a criação de perfis falsos e ataques cibernéticos que possam ter influenciado nas eleições de 2018.

Segundo Pacheco, os trabalhos do grupo estão em compasso de espera desde o início da pandemia. Outras duas CPIs q ue tratam do desmatamento da Amazônia legal aguardam instalação no Senado.

Na Câmara, uma CPI foi instalada em 2019 para apurar o derramamento de óleo na costa do nordeste, mas, segundo o site da Casa, não conta com a apresentação de pareceres, votos ou relatórios.

A Câmara e o Senado também instalaram, em 2019, CPIs para apurar a tragédia de Brumadinho após o rompimento da barragem da Vale, que levaram, entre outros pontos, ao pedido de responsabilização da Vale e da Tüv Süd e ao pedido de indiciamento criminal de 22 pessoas, entre elas o ex-presidente da mineradora Fábio Schvartsman.

O auge e o declínio das comissões de inquérito

Com a redemocratização e a Constituição de 1988, as CPIs ganharam fôlego e, na década de 90, duas comissões marcaram a história do país. Em 1992, uma comissão parlamentar de inquérito investigou o caso PC Farias, tesoureiro da campanha presidencial de Fernando Collor de Mello, culminou na queda do presidente da República.

Já no ano seguinte, uma CPI investigou o escândalo que ficou conhecido como Anões do Orçamento , um esquema de políticos que desviavam dinheiro de emendas parlamentares por meio de contratos com empresas fantasmas e empreiteiras. A comissão apontou o envolvimento de 18 parlamentares. Seis foram cassados, oito, absolvidos, e quatro renunciaram.

Em meados dos anos 2000, a CPI dos Correios, criada a partir de suspeitas de pagamento de propinas na estatal, desembocou em provas importantes para a investigação do mensalão, esquema de compra de apoio parlamentar durante o governo Lula e que levou à punição de diversos membros da cúpula do PT.

Nem sempre, porém, as CPIs chegam a resultados dessa monta. Cientistas políticos ouvidos pela agência Câmara em 2013 apontaram que elas haviam se tornado instrumentos muito controlados pelo governo, com eficácia reduzida , utilizadas por vezes para impedir a criação de outros colegiados – a Câmara, por exemplo, não pode ter mais que cinco CPIs ao mesmo tempo.

A substituição pela Lava Jato, que agora acabou

Enquanto operações da Polícia Federal ganharam destaque no combate à corrupção, as CPIs pouco avançaram nesse sentido. Segundo o cientista político da FGV Sérgio Praça, com o andamento da Operação Lava Jato, a partir de 2014, “o monopólio da investigação, da responsabilização política, passou a ser feita, na prática, pelo Ministério Público e pela Polícia Federal”.

“Agora, temos o pior dos mundos, com o Ministério Público desacreditado e um Legislativo que não tem tido a prática de formar CPIs para investigar possíveis crimes do Poder Executivo” disse Praça ao Nexo . “Então o desafio é retomar essa prática”.

A Lava Jato está em declínio em 2021. A força-tarefa de Curitiba que deflagrou a operação foi encerrada em fevereiro. Procuradores que participaram da investigação passaram a ser alvo de acusações de direcionamento político a partir da revelação de diálogos via Telegram que eles trocavam entre si e com o então juiz Sergio Moro.

Bolsonaro, por sua vez, disse que “acabou” com a Lava Jato por que “não tem corrupção” em seu governo. O presidente é investigado sob suspeita de interferir politicamente na Polícia Federal. Outros órgãos de controle, como a Receita Federal, sofreram pressões durante a atual administração.

Integrantes do Ministério Público Federal também apontam redução de sua independência. Nos governos petistas de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) e de Dilma Rousseff (2011-2016) sempre o primeiro de uma lista tríplice da categoria era escolhido como procurador-geral da República. Michel Temer (2016-2018) escolheu o segundo da lista. Bolsonaro ignorou as sugestões, optando por Augusto Aras. O atual chefe do Ministério Público Federal é acusado com frequência de atuar alinhado ao Palácio do Planalto .

A origem das CPIs no Brasil e no mundo

As comissões parlamentares de inquérito surgiram na Inglaterra. Há divergência se o instrumento surgiu no século 14, junto com a Câmara dos Comuns, ou se teve origem já no século 17.

No Brasil, foi em 1828 que surgiu o primeiro grupo de deputados e senadores que atuaram da maneira como prevê uma CPI. Eles ainda não tinham esse nome, mas se reuniram justamente para avaliar e fiscalizar as condições do Banco do Brasil, criado 20 anos antes.

Foi no século seguinte que elas passaram a existir legalmente, mas, ao longo da história do País, a presença das CPIs foi interrompida em diversos momentos de ruptura democrática. No período mais recente, elas foram inibidas durante o período de endurecimento da ditadura militar de 1964-1985. O próprio Congresso foi fechado durante o regime.

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