Como ‘CPF cancelado’ virou o novo ‘bandido bom é bandido morto’
Marcelo Roubicek
26 de abril de 2021(atualizado 28/12/2023 às 23h12)Bolsonaro comemorou a captura e morte de Lázaro Barbosa usando expressão. O 'Nexo' resgata uso do termo pelo presidente e seu entorno e como se deu a sua popularização na última década
Jair Bolsonaro e Sikêra Júnior (ao centro) seguram cartaz com ‘CPF cancelado’. Ao lado do presidente, os ministros do Turismo, Gilson Machado, e da Educação, Milton Ribeiro
O presidente Jair Bolsonaro comentou a morte de Lázaro Barbosa , nesta segunda-feira (28), com um tuíte com a expressão “CPF CANCELADO”. Suspeito de ter assassinado quatro pessoas de uma família em Ceilândia (DF), Lázaro foi morto por policiais durante um cerco na cidade de Águas Lindas (GO). O criminoso de 32 anos fugia das autoridades há mais de 20 dias.
A expressão “CPF cancelado” é uma forma de se referir à morte de uma pessoa, e é comumente utilizada em casos de execuções feitas por policiais.O termo dialoga com a cultura por trás da gíria “bandido bom é bandido morto”, reforçada por Bolsonaro em diversos momentos de sua carreira política e elemento importante da onda de extrema direita que elegeu o atual presidente e outros nomes em 2018.
Segundo especialistas, essa é uma cultura que abre brecha para abusos e ilegalidades , e até mesmo para execuções policiais – sendo que não há pena de morte no Brasil e tampouco previsão de punição sem determinação judicial. Casos em que a morte acontece por legítima defesa têm previsão legal própria.
LÁZARO: CPF CANCELADO!
— Jair M. Bolsonaro (@jairbolsonaro) June 28, 2021
Bolsonaro prosseguiu no Twitter: “O Brasil agradece! Menos um para amedrontar as famílias de bem “. O presidente, que deve buscar a reeleição em 2022 e busca adesão eleitoral das polícias , também parabenizou a Polícia Militar de Goiás por dar “fim ao terror” causado por Lázaro.
Esta não é a primeira vez que Bolsonaro usa a expressão. Em abril de 2021, o presidente posou para fotos segurando um cartaz com a mensagem “CPF cancelado” em uma imagem publicada nos canais oficiais do Palácio do Planalto. Junto ao presidente, apareceram os ministros Milton Ribeiro, da Educação, e Gilson Machado, do Turismo, além do apresentador Sikêra Júnior e membros da equipe de seu programa de TV. O registro foi feito após entrevista do presidente ao programa Alerta Especial – apresentado por Sikêra Júnior – da TV A Crítica, do Amazonas.
A expressão “CPF cancelado” é uma forma de referir à morte, e é comumente utilizada em casos de execuções cometidas por policiais com arma de fogo.
Em coluna publicada no jornal Folha de S.Paulo em abril de 2019, o escritor Sérgio Rodrigues afirmou que o “CPF cancelado” não é apenas um eufemismo para a morte, como outros tantos termos da língua portuguesa. O autor destaca que a expressão carrega um tom sarcástico , ao desumanizar as vítimas – reduzindo-as ao número do CPF – e ao mesmo tempo comemorar as mortes.
Rodrigues também afirma que a expressão é empregada normalmente como uma tática de identificação e demarcação de inimigos. Não à toa, o “CPF cancelado” é normalmente associado à figura do “bandido”.
A ideia de “CPF cancelado”, portanto, dialoga com a cultura por trás da gíria “bandido bom é bandido morto”. O Brasil é um país com alta letalidade policial . Também é um país em que a ideia de que “bandido bom é bandido morto” ainda é difundida por parte da população , incluindo Bolsonaro.
Silvia Ramos, da Rede de Observatórios da Segurança Pública, analisou o impacto da expressão “bandido bom é bandido morto” na violência policial em entrevista ao Nexo de 2017: “Mesmo que o policial saiba que está fazendo algo ilegal, como executar um criminoso, ele acha que aquilo não é ilegitimo nem imoral. Ele sabe que não se pode executar um criminoso quando está rendido, ou fazer uma emboscada para matar alguém numa área de periferia do Brasil. A questão hoje do crime e da segurança é esta: quem está sendo morto? Fossem jovens de classe média alta de áreas abastadas, a polícia mudaria em semanas. Quando alguém fala ‘bandido bom é bandido morto’, está falando que jovem, negro, pobre, de periferia morto não é problema meu.”
A expressão “CPF cancelado” foi popularizada pelo apresentador Sikêra Júnior , que comanda programa policialesco que começou em rede estadual amazonense e passou a ter transmissão nacional na RedeTV! em 2019.
Em um dos quadros do programa , Sikêra Júnior anuncia – e celebra – a morte de suspeitos pela polícia. No quadro, são usados cartazes iguais aos que Bolsonaro segurou em 23 de abril de 2021 – réplicas ampliadas do documento CPF (Cadastro de Pessoas Físicas) com uma tarja vermelha que diz, em letras garrafais, “cancelado”.
Antes de Jair Bolsonaro, o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) e o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filhos do presidente, já haviam posado com cartazes desse tipo. Os dois participaram do programa de Sikêra Júnior em setembro de 2020.
Na ocasião, Flávio deixou de comparecer a uma acareação (espécie de depoimento prestado ao Ministério Público) no processo que investigava o vazamento de informações da Operação Furna da Onça – que deu origem ao caso das rachadinhas na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro – para participar do programa televisivo.
Eduardo Bolsonaro (à dir.) e Flávio Bolsonaro (à esq. de Eduardo) seguram cartazes de ‘CPF cancelado’ junto a Sikêra Júnior (centro) e membros de sua equipe
Apesar da popularização por Sikêra Júnior, a expressão “CPF cancelado” não foi criada pelo apresentador. De acordo com Sérgio Rodrigues, a origem é incerta, mas a fonte provável são círculos policiais.
O termo ganhou aderência nas bases de extrema direita no final da década de 2010. Nas redes sociais, é comum que comentários de notícias sobre a morte de suspeitos por policiais contenham a expressão. Em veículos de mídia ligados à direita – como os próprios programas policialescos na televisão , que frequentemente trazem mensagens de desrespeito aos direitos humanos – também é possível encontrar a expressão .
Em 20 de agosto de 2019, “CPF cancelado” foi uma das palavras-chave mais usadas no Twitter. Naquele dia, um homem manteve 37 pessoas reféns em um ônibus na ponte Rio-Niterói, no Rio de Janeiro. Ele foi morto por um atirador da Polícia Militar depois de três horas de negociação.
A morte do sequestrador foi comemorada por autoridades como o Bolsonaro e o então governador do Rio, Wilson Witzel. Flávio Bolsonaro fez uma postagem com a legenda “CPF CANCELADO. O resgate da autoridade no Brasil está acontecendo”.
Em 26 de abril, questionado por uma jornalista sobre a foto com o cartaz quando o Brasil se aproximava das 400 mil mortes pela covid-19, o presidente respondeu: “Você não tem o que perguntar não? Deixa de ser idiota, menina!”
A proximidade de Bolsonaro com o discurso do “bandido bom é bandido morto” não é nova. Ele costumava usar a expressão em sua carreira como deputado . Em 2018, o tema da segurança pública foi um dos principais motes de sua campanha presidencial.
Nessa área, seu governo é marcado pela implementação de políticas para facilitar o porte de armas no país e pela tentativa de ampliar o chamado excludente de ilicitude, a fim de evitar que policiais não respondam por mortes em serviço. Trata-se de um dispositivo que muitos especialistas em segurança pública comparam a uma espécie de “licença para matar”.
Mas as principais críticas à foto de Bolsonaro com o cartaz de “CPF cancelado” em abril de 2021 diziam respeito ao fato de ser mais um episódio de descaso do presidente com a morte de centenas de milhares de brasileiros em meio à pandemia do novo coronavírus.
Em 20 de abril de 2020, Bolsonaro disse “ Não sou coveiro , tá?”, sobre o avanço da covid-19 no país. Oito dias depois, o presidente afirmou: “ E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê?”.
Em novembro, Bolsonaro disse que o Brasil precisava “deixar de ser um país de maricas ” e se queixou que “tudo agora é pandemia”. Em março de 2021, já em meio ao colapso hospitalar no país, o presidente imitou uma pessoa com falta de ar em uma de suas transmissões em redes sociais.
Em junho de 2021, o governo federal está pressionado por suspeitas de corrupção envolvendo o contrato da vacina Covaxin, que se somam às respostas inadequadas dadas pelo governo na pandemia. Desde o início da crise sanitária, em março de 2020, Bolsonaro atacou medidas de isolamento social, defendeu remédios que não funcionam contra a covid-19 e desestimulou a vacinação . Também minimizou e desdenhou a gravidade da pandemia, aglomerou pessoas em eventos oficiais pelo Brasil, questionou sem base científica o uso de máscaras e até incentivou a invasão de hospitais sob a falsa alegação de que eles estariam vazios. As ações e omissões da gestão federal na pandemia são investigadas pela CPI da Covid no Senado.
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