As questões técnicas e éticas que envolvem a xepa da vacina
Isabela Cruz
21 de maio de 2021(atualizado 28/12/2023 às 23h08)Aproveitamento de doses próximas do vencimento em pessoas fora da prioridade não tem regra uniforme no Brasil. Especialistas em saúde pública falam ao ‘Nexo’ sobre os dilemas da prática
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Frasco da vacina da farmacêutica AstraZeneca, com dez doses
O início da imunização dos brasileiros contra a covid-19, em meados de janeiro de 2021, popularizou uma expressão no país: a xepa da vacina. Xepa é sobra de alimentos, que não foram consumidos e estão disponíveis para quem quiser. No caso da pandemia, estamos falando das doses que sobram nos postos de vacinação ao fim de um dia de trabalho.
Como os frascos dos imunizantes contêm múltiplas doses e ficam sujeitos a um curto prazo de validade depois de abertos, a aplicação do que sobra deles em pessoas ainda fora da campanha de vacinação acabou virando uma alternativa contra o desperdício. A prática, porém, traz consigo algumas questões:
Num cenário nacional de escassez de vacinas, o aproveitamento total dos frascos de imunizante disponíveis é medida importante para salvar milhares de vidas. Na cidade de São Paulo, por exemplo, são aplicadas entre 1.800 e 2.000 doses de xepa diariamente, segundo a Secretaria de Saúde.
São aplicadas no Brasil atualmente três vacinas: a Coronavac, desenvolvida pelo laboratório chinês Sinovac e produzida nacionalmente pelo Instituto Butantan; a vacina desenvolvida pelo laboratório anglo-sueco AstraZeneca, em parceria com a Universidade de Oxford, e produzida no exterior e no Brasil, pela Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), e a vacina da Pfizer/BioNTech, importada.
As três são distribuídas ao SUS (Sistema Único de Saúde) em frascos que armazenam múltiplas doses, o que facilita a logística de transporte e armazenamento dos produtos na enorme malha da rede pública.
Cada uma das vacinas, porém, tem um prazo de validade diferente depois que seus frascos são abertos. Além disso, imunizantes de uma mesma marca também podem ter bulas estipulando o consumo em prazos diversos, dependendodo laboratório que os produziu e dos estudos científicos existentes naquele momento da produção. É o caso do imunizante da AstraZeneca.
8h
é o prazo de validade dos frascos multidoses (10 doses) da Coronavac , segundo informações do governo federal
6h
é o prazo de validade dos frascos multidoses da vacina da AstraZeneca , sejam os entregues pela Índia, sejam os entregues pelo consórcio internacional Covax (ambos de 10 doses), e da vacina da Pfizer
48h
é o prazo de validade dos frascos da vacina da AstraZeneca produzidas pela Fiocruz (5 doses)
O Ministério da Saúde deixou a questão da organização da xepa para estados e municípios. “Isso aconteceu para além da xepa, inclusive toda a definição de grupos prioritários. No Brasil afora, temos discrepâncias imensas sobre a ordem de vacinação entre os prioritários, e nas xepas não é diferente”, afirmou ao Nexo a cientista política Michelle Fernandez, professora da UnB (Universidade de Brasília) e especialista em políticas públicas de saúde.
No caso específico da xepa, o médico Juarez Cunha, presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações, destacou que campanhas anteriores de vacinação também utilizavam frascos de múltiplas doses, mas não geravam essa preocupação quanto à xepa, sobretudo porque os imunizantes não eram escassos. “Talvez seja uma questão a se pensar para outras vacinas também, fazer esse tipo de oferta [de xepa]. Era até um desperdício”, disse Cunha ao Nexo .
Com frequência, as secretarias municipais têm incentivado a aplicação da xepa, mas deixado o trabalho de definição dos usuários prioritários para cada unidade de saúde. Era o caso, por exemplo, de Recife e Olinda , pelo menos até o início de maio.
No Rio de Janeiro, a prefeitura orienta as equipes de saúde a escolherem alguns dos grupos prioritários definidos em fases ainda não alcançadas do Plano Nacional de Vacinação contra a Covid-19. Mas também não dá detalhes.
Em geral, as unidades buscam privilegiar os mais velhos ou os com mais comorbidades entre os concorrentes à xepa. A ordem de procura do posto também tem sido um critério importante, especialmente nas unidades que, em vez de filas presenciais, estão fazendo cadastros de usuários e assim formando uma longa fila virtual.
Disponíveis somente em cadernos dentro dos postos, essas filas virtuais têm sido de difícil acompanhamento pelos usuários. Numa unidade de saúde paulistana, por exemplo, mesmo o tamanho da fila é incerto. No início de abril, enquanto funcionários falavam em 4.000 pessoas , a prefeitura estimava que eram 800.
CONVOCAÇÕES POR TELEFONE
Na cidade de São Paulo, por exemplo, as unidades de saúde devem manter listas de espera com o contato de usuários elegíveis que residam em sua área de abrangência. Conforme as vacinas sobram, as pessoas são convocadas por telefone. Em meados de maio, todos os profissionais de saúde e pessoas com comorbidades com mais de 18 anos foram incluídos pela prefeitura entre os que podem fazer o cadastro .
VACINAÇÃO EM CASA
Em outras cidades, quando acaba o horário de vacinação das clínicas e das tendas drive-thru, as equipes vão às casas de idosos do público alvo que tenham a mobilidade reduzida , para aplicar as doses remanescentes. É o caso, por exemplo, de Belo Horizonte.
APLICATIVO NO CELULAR
Em cidades dos Estados Unidos, aplicativos de celular alertam os usuários sobre os postos mais próximos onde há excedente da vacina para ajudar quem não faz parte dos grupos prioritários.
As pessoas vacinadas na xepa, fora do calendário regular, também recebem a carteirinha de vacinação com a data de aplicação da segunda dose. Garantem, portanto, o lugar na fila da próxima rodada, entre grupos à frente na lista de prioridades da campanha de imunização.
Dessa forma, diante da falta de uniformidade dos critérios para a xepa e das múltiplas desigualdades no acesso à saúde que a pandemia já escancarou, brasileiros podem se perguntar se usufruir da xepa, especialmente em bairros mais ricos, pode representar, de alguma forma, uma conduta “fura-fila”.
“Diante da ausência de protagonismo do Ministério da Saúde na pandemia de uma forma geral, o cidadão tem o ônus não apenas da dificuldade no acesso à vacina, mas também da necessidade de enfrentar esse tipo de questão ética”, disse Michelle Fernandez.
Para Juarez Cunha, o importante é que as vacinas não sejam desperdiçadas: “com a falta de vacinas que temos, a prioridade é não deixar doses irem para o lixo”. Ele destacou também a dificuldade na definição de critérios completamente justos num cenário em que os grupos prioritários em razão da idade já estão sendo vacinados.
“Todas as situações têm sido difíceis. Por exemplo, no Rio Grande do Sul, só para vacinar profissionais da saúde foram 22 subgrupos dentro da prioridade”, disse Cunha. “Como definir, entre profissionais de diferentes áreas essenciais, quem vai se vacinar primeiro? Também não adianta mobilizar toda uma logística burocrática para convocar pessoas da periferia, mais vulneráveis à covid-19, e só ter duas, três doses para aplicar”, continuou.
O epidemiologista Paulo Lotufo, professor da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo), concorda com ele. “É preciso ser pragmático. Está acabando o dia, tem que vacinar quem está lá”, disse ele ao Nexo . “A pior coisa que pode ter é vacinas serem jogadas fora. É melhor dar para alguém de 20 anos. Não tem problema”, continuou.
Lotufo criticou, porém, o fato de algumas prefeituras estarem inserindo pessoas “com comorbidades” entre as prioridades das filas de vacinação. “Algumas prefeituras colocaram critérios de hipertensão, por exemplo, que ninguém sabe reconhecer. As pessoas estão se vacinando com qualquer receita. Ou as prefeituras suspendem esse critério ou vai ser um caos”, afirmou.
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