Por que a Lei de Cotas não precisa de chancela, só de revisão
Ana Elisa Faria
16 de julho de 2022(atualizado 28/12/2023 às 22h36)Especialistas falam ao ‘Nexo’ sobre a previsão de uma análise do dispositivo após dez anos de vigência e explicam por que debater sua ‘prorrogação’ não faz sentido
Lei de Cotas completa dez anos com debate sobre sua prorrogação
Na véspera do recesso parlamentar, na quinta-feira (14), deputados tentaram incluir na pauta da Câmara uma votação sobre a Lei de Cotas, que completa dez anos em agosto de 2022. A partir de um projeto de lei da deputada federal Maria do Rosário (PT-RS), que prevê tornar permanente a lei – que, na verdade, já é garantida por seu texto original –, deputados de oposição pressionaram para avaliar a proposta, mas o debate acabou sendo barrado pela base do governo.
A abordagem em torno da necessidade de “chancelar” ou “prorrogar” a Lei de Cotas, no entanto, é confusa e não faz sentido pelo texto da lei de 2012, apontam especialistas em direito. Quando foi promulgada, a legislação propunha a realização de uma revisão da política em agosto de 2022 , após uma década de vigência. No entanto, encerrar a política de cotas não faz parte dessa proposta. E mais, mesmo se a lei não for revista em 2022 , ela permanece em vigor, isto é, as cotas não podem ser revogadas automaticamente.O debate e a possível votação na Câmara ficaram para agosto, quando os parlamentares voltam do recesso.
Neste texto, o Nexo explica por que a discussão da Lei de Cotas no Congresso a partir de uma suposta necessidade de “prorrogação” é perigosa para as políticas de ações afirmativas e apresenta quais são, na visão de especialistas, os pontos centrais do dispositivo que devem ser revistos.
Conhecida como Lei de Cotas, a Lei 12.711 , sancionada em 29 de agosto de 2012 pela ex-presidente Dilma Rousseff (PT), determina que universidades e institutos federais de educação, ciência e tecnologia reservem metade de suas vagas para estudantes oriundos de escolas públicas – com parcelas dentro dessa porcentagem reservadas por critérios raciais.
As cotas destinadas a autodeclarados pretos, pardos ou indígenas e às pessoas com deficiência devem ser preenchidas de acordo com a proporção dessas etnias e dessas condições em cada estado.
Depois de dez anos em vigência, a Lei de Cotas tinha prevista uma revisão, para o acompanhamento da política. É principalmente esse item que tem causado confusões em torno do tema e sido apresentado como um “convite” para a manutenção ou não das cotas. Porém, caso a revisão não ocorra no ano de 2022, a lei continua vigorando.
Em texto publicado no Nexo Políticas Públicas , as pesquisadoras Bruna Rafaela de Santana Santos e Juliana Vieira dos Santos detalham essa questão: “Se nada for feito, a lei atual permanece em vigor, isto é, as cotas não podem ser revogadas automaticamente. A reforma da legislação deve se dar necessariamente por meio de lei ordinária”, escrevem.
“Originalmente, a redação da lei previa que a revisão seria feita pelo Poder Executivo, mas uma alteração legislativa em 2016 (13.409/2016) retirou essa competência das mãos do governo federal, deixando apenas a previsão de que, no prazo de dez anos, seria promovida uma revisão. Não detalha, porém, como se dará esse processo, qual seria o procedimento a ser seguido, quais as consequências da revisão para a política de cotas já estabelecidas, que metas se espera ter alcançado para balizar a revisão; e, por fim, não prevê se a revisão demanda, necessariamente, uma avaliação das políticas – e, em caso positivo, quem deverá realizar essa avaliação.”
Por esses detalhes jurídicos, o discurso de que é preciso garantir, com a votação de um projeto de lei, a manutenção da Lei de Cotas, tem surgido, e se materializou na Câmara na quinta-feira (14). Esse debate coloca uma urgência para essa definição, por considerar agosto de 2022 – mês em que a Lei completa dez anos e pode passar por revisão – uma espécie de prazo para o futuro da Lei de Cotas no Brasil.
Ao longo do dia, usuários compartilharam mensagens com esse teor usando a hashtag #EuDefendoasCotas no Twitter. O deputado Orlando Silva (PCdoB) publicou um vídeo pedindo a mobilização para o “projeto de lei que prorroga as cotas” e poderia ser votado no dia.
Especialistas consultados pelo Nexo explicam que a Lei de Cotas não precisa ser prorrogada. “Existe uma enorme confusão no debate público e nos próprios projetos de lei que não diferenciam revisão e prorrogação”, falou ao Nexo Márcia Lima , professora do departamento de sociologia da USP (Universidade de São Paulo) e coordenadora do Afro-Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento).
Luiz Augusto Campos , professor de sociologia e ciência política no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e coordenador do Gemma (Grupo de Estudos Multidisciplinares de Ação Afirmativa), salienta que não há a necessidade de prorrogação da Lei de Cotas porque ela não expira. “Então, se nada for feito neste momento, mesmo se nenhuma revisão for realizada, a lei continua vigendo.”
O advogado e doutor em filosofia Silvio Almeida reforça a diferenciação entre prorrogação e revisão. “Falar em prorrogação não faz nenhum sentido jurídico, faz parecer que a lei atingiu o seu limite, e isso não aconteceu. É preciso, sim, uma revisão periódica, o que é bem diferente”, disse ao Nexo .
Lima acha que a revisão da lei não deveria ser feita em 2022. “Não se pode revisar algo sem ter avaliado seus resultados. E o governo não fez a sua parte. Não há dados oficiais de avaliação da implementação da política”, disse. Ela cita que esse monitoramento tem sido feito por organizações da academia e da sociedade civil, por meio de um “enorme esforço intelectual para construirmos esses dados”. Como exemplos, cita o Consórcio de Acompanhamento das Ações Afirmativas , coordenado pelo Afro-Cebrap e Gemaa.
Mas por que, então, o debate com o argumento da prorrogação, que não se sustenta de acordo com o texto da lei, veio à tona? Para Campos, políticos que sempre foram contra a lei veem uma oportunidade de modificá-la. Há projetos de lei no Congresso prevendo a exclusão do critério racial das ações afirmativas, por exemplo.
“Já os progressistas, que são a favor da Lei de Cotas, têm tentado propor uma nova lei ou incluir novas medidas à lei existente, com uma intenção que, a princípio, parece justa, a de fazer essa política avançar ainda mais”, disse Campos ao Nexo . “Entretanto, isso é um pouco imprudente porque esses mesmos políticos têm ignorado todos os pareceres jurídicos feito sobre o tema, ou seja, de que a prorrogação não se aplica.”
“O risco maior é chamar a atenção dos políticos contrários à lei para que eles se fortaleçam e, assim, consigam retrocessos. Em busca de um aprofundamento num cenário político adverso, podemos sair com menos do que entramos”
Para Almeida, há dois motivos essenciais para que o debate sobre a lei esteja acontecendo agora, da forma como está acontecendo. “O primeiro deles me parece muito evidente: existe uma parte da sociedade brasileira que se move pelo racismo , ou seja, que não aceita qualquer tipo de política de promoção da igualdade, especialmente quando se trata de uma política de promoção da igualdade racial. Isso ficou bem evidente nas movimentações que foram feitas nos últimos dias pelos integrantes do governo, pela situação.”
O outro fator apontado por Almeida é o “profundo desconhecimento” em relação ao estado da arte das discussões a respeito das políticas de ação afirmativa e suas questões jurídicas. “Inclusive por parte da oposição, que se deixa capturar muito facilmente. Entendemos que a conjuntura é difícil e complicada, porém, o que me espanta é a maneira pela qual o debate não se nutre das principais contribuições técnico-jurídicas e políticas que foram construídas por especialistas bem qualificados no decorrer de anos”, ressalta.
Segundo a opinião dos especialistas, o momento não é propício para uma revisão adequada da Lei de Cotas, contudo, todos concordam que ela deve acontecer assim que possível. Os três acreditam que a lei, mesmo precisando passar por um balanço, é bem-sucedida.
“O aspecto mais importante para uma boa revisão da lei é a transparência no acesso aos dados. Mas a questão da permanência estudantil e do acesso igualitário a todas as carreiras são questões centrais”, disse Lima.
Almeida acredita que a lei tem de ser aperfeiçoada em dois pontos: no monitoramento do dispositivo e em relação à permanência estudantil. “Precisamos estabelecer formas mais consistentes e eficientes de monitorar a lei, desde instituir maneiras de coibir fraudes que existem, ou tentativas de fraudes para burlar a política de ação afirmativa até o acompanhamento dos estudantes que são contemplados pela política. Isso é necessário para entendermos como essas pessoas vão ser absorvidas depois nas suas respectivas áreas, como é que elas vão sendo encaixadas no mercado. Além disso, é fundamental construir uma constitucionalidade que dê conta de analisar os resultados da política.”
Sobre o quesito da permanência, Almeida diz que é fundamental criar condições materiais que farão com que o estudante não apenas entre na universidade, mas possa continuar ali, até a sua formação.
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