Expresso

O que é ciência aberta. E quais os entraves para ela

Valentina Candido

15 de janeiro de 2023(atualizado 28/12/2023 às 21h23)

Movimentos defendem publicação de estudos em plataformas abertas, e até governo americano passa a exigir que pesquisas com financiamento público sejam disponibilizadas. Mas mudanças enfrentam desafios

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FOTO: MIDJOURNEY

Ilustração gerada por inteligência artificial de um cientista em um mundo de conhecimento aberto

Ciência aberta

A publicação de pesquisas em revistas e periódicos acadêmicos é um dos pilares da ciência atual. A lógica é que esses veículos garantem que o estudo em questão foi revisado por outros cientistas e permitem que os resultados alcancem mais pesquisadores.

Já faz alguns anos, contudo, que esse sistema lida com contradições. Periódicos geridos por editoras tradicionais são criticados por cobrarem assinaturas caras às instituições de ensino, tornando o acesso aos estudos mais restrito. A internet fez com que revistas digitais se multiplicassem, mas não tornou o processo mais acessível – pelo contrário, os pesquisadores começaram a ter que pagar para ver seus trabalhos publicados.

Em paralelo, alguns cientistas reivindicam meios alternativos para publicar suas pesquisas, sem custos para quem publica ou lê o estudo. O movimento que incorpora essa e outras práticas de democratização do conhecimento é chamado de open science, ou, em português, ciência aberta. Neste texto, o Nexo explica esse movimento e seu potencial no avanço do conhecimento científico.

O que é ciência aberta

A expressão ciência aberta é um termo guarda-chuva para um conjunto de ações que tem o objetivo comum de tornar o conhecimento científico mais acessíve l. Além de defender mudanças na publicação de estudos, passa também pelo compartilhamento de dados e aprimoramento da comunicação da comunidade científica com o resto da sociedade.

“Open science ou ciência aberta é um termo amplo que denota um movimento por uma ciência mais transparente de modo geral, no qual o acesso aberto a artigos é um dos vários componentes envolvidos”, disse ao Nexo o médico, professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e colunista da Ponto Futuro .

A Unesco, agência das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, considera que práticas de ciência aberta são importantes porque, entre outros pontos, ajudam a combater a fragmentação do conhecimento, que deixa de ficar concentrado em núcleos e passa a circular mais e ser construído coletivamente.

Em 2021, a Unesco redigiu um termo que oferece recomendações para políticas e práticas de ciência aberta. O documento integra outros tratados internacionais de pesquisa científica que reconhecem o acesso aberto ao conhecimento desde a década de 1990, como a Declaração da Unesco/CIC sobre a Ciência e o Uso do Conhecimento Científico, de 1999, e a Declaração de Bethesda sobre Publicação de Acesso Aberto, de 2003.

Sua publicação foi feita a fim de se criar um marco internacional sobre as práticas de ciência aberta e estabelecer aos países membros das Nações Unidas recomendações para a sua promoção. Uma dessas recomendações é o compartilhamento dos dados coletados para que outros pesquisadores possam usá-los em suas pesquisas. Isso inclui não só disponibilizá-los de forma gratuita, mas deixá-los organizados e legíveis para que eles possam ser consultados e reutilizados no futuro.

O compartilhamento de dados ganhou grande importância durante a pandemia de covid-19. Desde os primeiros casos da doença, a OMS (Organização Mundial de Saúde) defendeu a publicação de dados de pesquisa como uma estratégia para o combate da doença.

Em 2021, após a descoberta da variante omicron, a organização chegou a desenvolver uma plataforma exclusiva para a divulgação de informações sobre a covid-19. Nela, os cientistas e médicos podiam depositar o que haviam acumulado sobre a doença e usar os dados de pesquisadores de outros países para construir seus trabalhos.

Ainda que muitas pesquisas tenham sido desenvolvidas de forma colaborativa, problemas como sistemas de dados incompatíveis ainda tornam o compartilhamento mais complexo e demorado.

Em 2022, o periódico The Lancet realizou uma série que uniu análises dos problemas enfrentados no compartilhamento de dados durante a pandemia, propondo estratégias para tornar esse compartilhamento mais eficiente no futuro. Em um dessas análises, por exemplo, pesquisadores defendem a padronização dos relatórios de dados de saúde dos estados dos EUA, uma vez que, durante a pandemia, o fato desses dados serem publicados com padrões distintos dificultou o controle nacional da doença .

Ciência sem paywall

Outro exemplo de prática de ciência aberta é a publicação de estudos com acesso livre , em plataformas que não restrinjam a leitura do trabalho. Isso pode ser uma postura adotada pelo pesquisador, que opta por publicar seus trabalhos em repositórios mantidos por instituições governamentais ou sem fins lucrativos, ou pelo periódico, que disponibiliza algumas pesquisas para acesso livre em plataformas virtuais.

Olavo Amaral explica que o modelo tradicional de assinaturas, onde é necessário pagar para ler um artigo, faz com que as instituições de ensino arquem com o custo de acesso aos periódicos. Isso apesar de muitos desses trabalhos terem sido produzidos dentro dessas instituições ou financiados com verba pública .

Por essa razão, o acesso aberto é uma das políticas mais difundidas de ciência aberta. O governo dos Estados Unidos, por exemplo, determinou que a partir de 2026 todas as pesquisas financiadas com recursos públicos deverão ser disponibilizadas gratuitamente .

Há também plataformas que disponibilizam gratuitamente artigos científicos pagos, em boicote ao modelo de assinatura. O mais famoso é o Sci-Hub, que é acusado de violar os direitos autorais das editoras e responde a processos de pirataria . Sua popularidade tem motivado mudanças no meio científico. Um estudo publicado no periódico Scientometrics em 2022 sugere que artigos disponíveis para download no Sci-Hub ganham mais visibilidade que se estivessem somente em periódicos tradicionais, recebendo quase o dobro de citações por estarem na plataforma.

Apesar do benefício que o acesso livre traz para o público, Amaral lembra que a sua apropriação por periódicos privados criou um novo problema. O crescimento do acesso livre levou as próprias revistas a disponibilizar artigos para acesso gratuito em suas plataformas virtuais. Todavia, para manter o lucro no processo de publicação, elas deslocaram o valor de assinatura para os autores, de forma que muitos deles passaram a ser cobrados para publicar suas pesquisas.

O custo para ter um artigo publicado em uma revista científica pode aparecer em forma de tarifa para submeter a pesquisa para avaliação, cota para se manter filiado a um periódico, taxa de publicação e, no caso das revistas físicas, participação no custo de impressão. Em média, o valor varia de acordo com o funcionamento da revista e a relação do pesquisador com o periódico, custando de U$200, para revistas menos reconhecidas, a U$1.000, para aquelas com mais alcance.

As revistas tradicionais também aderiram a esse novo sistema e aproveitam do seu prestígio para cobrar taxas muito acima do valor de mercado para publicar artigos e disponibilizá-los em acesso livre. A Revista Nature, por exemplo, divulgou em 2020 que passaria a oferecer este serviço para os pesquisadores que estivessem dispostos a pagar US$11.390 por artigo publicado.

“O sistema de acesso aberto resolve esse problema [das pessoas não conseguirem pagar para ler os artigos], mas o acesso aberto pago nas revistas acaba gerando um problema diferente, que é a barreira para publicar ciência – já que ter um artigo publicado em uma grande revista acaba tendo custos não compatíveis com a realidade de financiamento na maioria dos países, o que ajuda a elitizar a ciência das grandes revistas”

Olavo Amaral

Professor da UFRJ e colunista da Ponto Futuro

Modelo de assinaturas

  • Modelo das revistas impressas que é reproduzido em algumas plataformas virtuais, sobretudo das revistas tradicionais
  • Em tese, pesquisador não precisa pagar pra publicar
  • A revisão é feita por pesquisadores voluntários e arbitrada pelos editores dos periódicos
  • Acesso é fechado e só quem assina a revista lê o estudo
  • O custo da publicação é concentrado nas instituições de ensino ou programas públicos, que subsidiam as assinaturas

Modelo open access em periódicos privados

  • Modelo que surgiu após a internet e é comum nos periódicos exclusivamente virtuais. Está sendo adotado aos poucos pelas revistas tradicionais de prestígio
  • Pesquisador precisa pagar pra publicar
  • A revisão é feita por pesquisadores voluntários e arbitrada pelos editores dos periódicos
  • Acesso é aberto e todos podem ler o estudo
  • O custo da publicação é concentrado no pesquisador . Em alguns casos, as bolsas de pesquisa arcam com a publicação.

Repositórios preprint

  • Plataformas totalmente gratuitas onde os artigos científicos são disponibilizados antes da publicação
  • Pesquisador não precisa pagar pra publicar
  • Não é feita a revisão por pares
  • Acesso é aberto e todos podem ler o estudo

Modelo 100% aberto

  • Acontece em plataformas sem fins lucrativos
  • Pesquisador não precisa pagar pra publicar
  • A revisão é feita por pesquisadores voluntários e acontece em um sistema chamado open per review , ou revisão de pares aberta
  • Acesso é aberto e todos podem ler o estudo
  • O custo da publicação é concentrado na instituição financiadora do projeto , que normalmente é pública e precisa arcar com a infraestrutura da plataforma
  • Defensores deste modelo entendem que seu custo de manutenção das plataformas é baixo e representa um investimento frente ao cobrado pelas editoras nos modelos de assinatura e open acess.

Plataformas sem fins lucrativos

Os periódicos geridos com verba pública ou sem fins lucrativos são uma solução mais definitiva para resolver o problema das taxas impostas pelas editoras. Olavo Amaral explica que existem muitas plataformas virtuais que funcionam com um baixo ou nenhum custo de operação e que conseguem oferecer um serviço gratuito tanto de leitura quanto de publicação dos artigos científicos. Exemplo disso são os servidores de preprints , que disponibilizam pesquisas antes delas serem revisadas.

Os críticos desse modelo apontam para a revisão como um dos desafios para que os periódicos públicos e os servidores preprints se tornem mais populares. Isso porque, ainda que o trabalho de revisão em plataformas pagas seja majoritariamente voluntário, ele é procurado pelo prestígio acadêmico das revistas de renome e por ser arbitrado por editores, o que garante, entre outras coisas, o anonimato do revisor. Sobre isso, Amaral diz que plataformas de revisão por pares abertas já existem e diz: “Nada impede que acadêmicos passem a usar seu tempo para revisar estes artigos abertos publicamente, ao invés de investi-lo em nome de editoras que lucram com o processo”.

Ele lembra que o Brasil, em particular, “consegue manter muitas de suas revistas gratuitas, tanto para publicar como para ler, com base na infraestrutura publicamente financiada”. O principal exemplo disso é o SciELO.

O SciELO (Scientific Electronic Library) funciona como uma biblioteca digital gratuita de pesquisas publicadas em diferentes periódicos do Brasil e do mundo. Sua operação é feita com um modelo de cooperação, e seus custos são subsidiados por instituições públicas de pesquisa como o Cnpq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e a Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Para Amaral, o SciELO “permitiu que boa parte das revistas nacionais se mantenha gratuita para ler e publicar”.

FOTO: DIVULGAÇÃO/SCIELO

Portal SciELO

O SciELO é uma plataforma de publicação brasileira que mantém parceria com periódicos internacionais

Plataformas como o SciELO se tornaram viáveis após o surgimento da internet, que reduziu significativamente o custo de publicação em relação às revistas impressas.

Antes disso, como explica Stephen Buranyi, escritor especialista em ciência e meio ambiente, em um artigo sobre a indústria de publicações científicas para o jornal britânico The Guardian, algumas instituições públicas e sociedades científicas já mantinham periódicos próprios, mas seu alcance era limitado devido às dificuldades de impressão e distribuição dos exemplares. Assim, conglomerados editoriais, que conseguiam produzir revistas científicas em larga escala, representavam uma competição desigual e concentravam a maior parte do mercado.

A contradição apontada pela comunidade envolvida com a ciência aberta é que mesmo com o surgimento da internet e a existência das plataformas totalmente abertas, as revistas científicas geridas por conglomerados editoriais continuam exercendo grande influência nas publicações científicas.

Amaral explica: “o sistema 100% aberto a baixo custo já existe: é só usá-lo. O problema é que a avaliação científica por conta de instituições e financiadores dá um peso anacrônico e inexplicável ao local de publicação, o que força cientistas a compactuar com o sistema das grandes revistas”.

A importância adquirida pelas editoras

Stephen Buranyi conta que o porquê das editoras terem uma importância tão grande na publicação científica passa pelo papel que elas exerceram na história recente da ciência.

Após o fim da Segunda Guerra, em 1945, o mundo vivia um período de grande entusiasmo científico. Movidos pela competição tecnológica da Guerra Fria, os governos, sobretudo o dos Estados Unidos, investiam grande quantidade de dinheiro em pesquisa, ampliando a produção nas universidades e nos laboratórios.

Nessa época, as publicações se tornaram parâmetro para avaliar o trabalho dos cientistas, o que, segundo Buranyi, foi um processo incentivado pelas próprias editoras. Por meio de figuras como Robert Maxwell , um grande agenciador de cientistas, essas empresas iam atrás de pesquisadores de renome com a promessa de dar mais visibilidade às pesquisas a partir da publicação.

Com o tempo, as revistas que haviam publicado cientistas famosos absorveram o prestígio deles e passaram a ser vistas como uma referência acadêmica. O negócio foi se expandindo até que a publicação se tornasse requisito para vagas nas universidades, disputa por bolsas e posição do pesquisador em seu meio.

“O trabalho longo, lento e quase sem direção realizado por alguns dos cientistas mais influentes do século 20 não é mais uma opção de carreira viável. Sob o sistema atual, o pai do sequenciamento genético, Fred Sanger, que publicou muito pouco nas duas décadas entre seus prêmios Nobel de 1958 e 1980, poderia muito bem ter ficado sem emprego”

Stephen Buranyi

escritor especialista em ciência e meio ambiente para o The Guardian

Além da quantidade de publicação, os pesquisadores também são avaliados em relação às revistas em que os artigos são aceitos. No Brasil, o sistema Qualis, da Capes, avalia a produção das pós-graduações de acordo com o local de publicação de estudos.

Segundo o professor da UFRJ, esse tipo de sistema avaliativo penaliza os pesquisadores que optam por publicar em plataformas nacionais, uma vez que essas plataformas não acumulam o prestígio das revistas tradicionais.

Amaral ainda diz que essa lógica faz com que pesquisadores com menos verba de pesquisa, sobretudo de países subdesenvolvidos , que não conseguem arcar com o custo de publicar nas grandes revistas, sejam excluídos, contribuindo para agravar desigualdades já existentes na ciência mundial.

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