Externo

O que aprendemos sobre isolamento com artistas da prisão

Janie Paul

12 de junho de 2020(atualizado 28/12/2023 às 12h49)

Em um sistema que trata pessoas como objetos que devem ser contados, acorrentados, revistados e designados a um número, a arte é uma forma de reafirmar a autonomia – e reivindicar suas vidas

O Nexo depende de você para financiar seu trabalho e seguir produzindo um jornalismo de qualidade, no qual se pode confiar.Conheça nossos planos de assinatura.Junte-se ao Nexo! Seu apoio é fundamental.

ARTIGO ORIGINAL

What we can learn about isolation from prison artists

The conversation

9 de Junho de 2020

Autoria: Janie Paul

Tradução: Larissa Moura

Temas

Compartilhe

FOTO: FORNECIDA PELA AUTORA/PROJETO ARTES CRIATIVAS NA PRISÃO

Escultura de um cervo ou veado

Robert Sarber, ‘Cervo/ Veado’, papel higiênico, cola e acrílica, 2017.

Durante os últimos meses a maioria de nós tem se encontrado em um território não familiar, tentando moldar os dias que perderam seus formatos enquanto lidamos com a separação física.

Muitas pessoas encarceradas, no entanto, têm passado anos tentando compreender o que fazer com o tempo no isolamento. Alguns descobrem a fé, enquanto outros leem e se educam. Há também os que se tornam artistas.

Pelos últimos 25 anos eu tenho trabalhado como curadora sênior e cofundadora da exposição anual de artes dos prisioneiros do estado de Michigan na Universidade de Michigan. A cada ano essas exibições arrastam milhares de pessoas que olham e compram os trabalhos dos presos. Para os artistas, essas mostras são fonte de validação e suporte. Eles também ficam com o dinheiro das vendas.

Poder conhecer muitos desses artistas confirmou minha crença de que fazer arte é uma atividade humana básica que dá forma ao significado. Em condições de confinamento extremo, encontrar propósito se torna ainda mais urgente.

A maioria dos artistas da prisão não considerava fazer arte até serem encarcerados. Para muitos é uma chance de crescimento ao invés da deterioração.

Para outros, como Wynn Satterlee, um ex-detento de uma prisão de segurança máxima, foi uma questão de vida ou morte.

Na cadeia disseram que ele iria morrer de câncer. Com a ajuda de amigos, ele começou a pintar.

“Eu pintava para escapar do sofrimento e da dor”, ele me contou depois que foi liberado da cadeia. “Dez horas por dia, sete dias por semana, por sete anos. E eu superei o câncer.”

FOTO: FORNECIDA PELA AUTORA/PROJETO ARTES CRIATIVAS NA PRISÃO

Pintura de um homem encapuzado sendo segurados por várias crianças enquanto ele mesmo segura homens dentro de celas.

Wynn Satterlee, ‘Libertem meu pai,’ acrílica sobre tela, 2005.

Oliger Merko, nascido na Albânia, cumpre prisão perpétua com a possibilidade de condicional. “Realmente te abala pegar uma sentença dessas”, ele me contou durante uma entrevista na unidade de segurança máxima de Ionia, em Michigan. “Eu estava totalmente sem esperanças, à deriva, sem direção. Comecei a pensar mais profundamente e quando descobri a arte, tudo se abriu. Agora eu pinto por três ou quatro horas por dia e não quero parar nem para me alimentar. É mais uma segunda vida do que um escape.”

Dar um salto como esse em direção à expressão artística requer algumas capacidades humanas básicas que geralmente ignoramos mas que podem ser convocadas em situações extremas. Isso envolve encontrar o extraordinário no ordinário – uma exigência para muitos artistas encarcerados que não contam com dinheiro para materiais caros.

Alguns eventualmente aprendem que quase tudo que pode ser pego e segurado pode ser transformado em um lindo objeto de arte tridimensional. Eles usam papel higiênico e cola, sabão, papelão, papel, pedras do jardim, tampinhas de plástico e garrafas. A escultura de Robert Saber “Cervo/veado” foi feita de papel higiênico e cola e depois pintada com acrílica.

Kenneth Mariner faz dioramas de papelão , pastas velhas, barbante, cola, lenço, tinta acrílica e amarrilhos.

FOTO: FORNECIDA PELA AUTORA/PROJETO ARTES CRIATIVAS NA PRISÃO

Escultura em papelão de uma casa de dois andares destruída e um tanque de guerra no térreo

Kenneth Mariner, ‘Casa Diorama,’ papelão e mídia mista, 2019.

Muitos artistas encarcerados cultivam a habilidade de focar por longos períodos. Esta disciplina é uma forma de resistir à monotonia e a violência da vida na cadeia.

John Bone aprendeu a desenhar fazendo centenas de ilustrações de sua cela, às vezes trabalhando 16 horas por dia, observando cada detalhe do ambiente. Sua análise de algo com nenhuma beleza intrínseca – acoplada com uma íntima atenção aos valores dos tons e às estruturas espaciais de seu desenho – resulta em notáveis trabalhos.

FOTO: FORNECIDA PELA AUTORA/PROJETO ARTES CRIATIVAS NA PRISÃO

Ilustração de homem preso em uma cela olhando pela grade

John Bone, ‘Cena da cela,’ Grafite, 2010.

Enquanto aprendia a desenhar, Billy Brown se frustrava. Então, um dia ele rezou por uma visão e descobriu uma técnica extraordinária para lápis de cor em papel preto. No começo de cada traço ele pressiona levemente o papel e enquanto move o lápis aumenta a pressão, o que torna a cor mais saturada.

FOTO: FORNECIDA PELA AUTORA/PROJETO ARTES CRIATIVAS NA PRISÃO
Arte abstrata em tons verdes

Billy Brown, ‘Pessoas em movimento,’ lápis de cor em papel, 1999.

O que permite uma pessoa ter tanta atenção por tanto tempo em isolamento?

Os artistas em encarceramento que eu conheço são motivados por uma necessidade poderosa de reafirmar sua identidade e explorar os ímpetos desconhecidos pelo amor, beleza, natureza e animais, um senso de realização e a habilidade de comunicar sentimentos intensos. Esse desejo é tão forte que as pessoas começam a fazer arte sem a insegurança que a maioria das pessoas que não são artistas no mundo sentiriam. Karmyn Valentine, uma carpinteira, nunca havia feito arte antes de vir para a prisão. Em sua primeira pintura, “Minha dor”, foi capaz de encontrar uma forma para seu sofrimento.

FOTO: FORNECIDA PELA AUTORA/PROJETO ARTES CRIATIVAS NA PRISÃO

Pintura em aquarela de uma mulher com cabeça inclinada e uma flecha no peito

Karmyn Valentine, ‘Do jeito que se sente,’ aquarela em papel, 2016.

“Eu fui abusada e traída e é por isso que a flecha vem pelas costas”, ela disse. “Estou tocando minha flecha porque a dor é minha companhia constante. Vivi com ela antes de chegar na cadeia e vivo com ela agora.”

Existe uma liberdade que esses artistas podem acessar na escolha que fazem sobre o conteúdo, material, traços, texturas, cores, formas e superfícies. O próprio ato de fazer essas escolhas é uma forma de reivindicar sua agência. Isso é significativo em um sistema que trata pessoas como objetos que devem ser deslocados, contados, acorrentados, revistados e designados a um número.

O tempo e o futuro mudam quando detentos se tornam criadores ao invés de objetos. Uma vez que artistas imbuem seu propósito e significado em seu dia-a-dia, acordar não é mais algo a se temer. Como Merko explicou: “Antes de eu me tornar artista, todos os dias eram rotineiros, e agora, mesmo que na cadeia você queira que os dias passem rapidamente, eu às vezes desejo que eles sejam mais longos quando estou pintando. É como se eu não pertencesse mais a esse tempo.”

Artistas encarcerados desenvolveram uma prática na qual um trabalho de arte leva a outro, direcionando-os para um caminho que se desenvolve infinitamente e a um sentimento de estar alicerçado. Para aqueles de nós que estamos vivendo com o estresse e a frustração durante as restrições da covid-19, esses artistas demonstram como desenvolver um espaço interior de liberdade – e como viver imaginativamente e propositadamente em um novo mundo estranho.

Janie Paul,Professora emérita de arte e design na Universidade de Michigan

A seção “Externo” traz uma seleção de textos cedidos por outros veículos por meio de parcerias com o Nexo ou licenças Creative Commons.

NEWSLETTER GRATUITA

Nexo | Hoje

Enviada à noite de segunda a sexta-feira com os fatos mais importantes do dia

Este site é protegido por reCAPTCHA e a Política de Privacidade e os Termos de Serviço Google se aplicam.

Gráficos

nos eixos

O melhor em dados e gráficos selecionados por nosso time de infografia para você

Este site é protegido por reCAPTCHA e a Política de Privacidade e os Termos de Serviço Google se aplicam.

Navegue por temas