
Homem levanta as mãos em frente ao volante de um carro autônomo, na Inglaterra
Veículos dotados de sistemas avançados de direção autônoma já circulam em cidades dos Estados Unidos, da Ásia e da Europa. Na China, a empresa de tecnologia Baidu, dona do aplicativo de mobilidade urbana Apollo Go, e a startup AutoX, ligada ao conglomerado Alibaba, oferecem serviços em caráter experimental de robotáxi em alguns dos principais centros urbanos do país, como Beijing, Xangai e Shenzhen. Os veículos autônomos disponíveis hoje, contudo, enquadram-se em um cenário limitante: dependem de um motorista de segurança a bordo, que assuma o controle do volante em situações de risco; ou deslocam-se apenas em baixa velocidade, em torno de 40 a 50 km/h, por circuitos fechados, com obstáculos e riscos previamente mapeados.
Ainda não existem automóveis com automação plena, capazes de trafegar com segurança em rotas variadas e sem intervenção humana. “Carros autônomos que interagem com a infraestrutura das cidades gerando melhorias no trânsito, conforto e segurança aos usuários e pedestres são o futuro da mobilidade, mas é uma transformação que ainda vai levar 20 ou 30 anos para acontecer”, diz o cientista da computação Fabio Kon, do Departamento de Ciência da Computação do IME-USP (Instituto de Matemática e Estatística da Universidade de São Paulo).
Os veículos são classificados em cinco níveis de autonomia, conforme escala criada pela SAE International, entidade que reúne cientistas e especialistas em engenharia automotiva. O funcionamento desses carros depende de um conjunto de sistemas, entre eles sensores para observar o entorno e captar a presença de pedestres, ciclistas, objetos e outros carros na via e nas proximidades, e ferramentas de inteligência artificial para interpretar as informações captadas e transformá-las em ações, como controle de velocidade, frenagem, entradas e saídas de faixas de rodagem. Também necessitam de navegadores eletrônicos, como o GPS (Sistema de Posicionamento Global), para planejar e traçar rotas.
“Já temos os sistemas necessários para a autonomia veicular, mas ainda precisamos aperfeiçoar muito a capacidade dos sensores de obter informações de qualidade e da inteligência artificial de interpretar essas informações”, constata o cientista da computação Fernando Osório, do ICMC (Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação) da USP, campus de São Carlos. Centros de pesquisas públicos e privados em vários países dedicam-se a criar as soluções necessárias para superar esses desafios.
No Brasil, uma das principais iniciativas em curso é a do grupo de trabalho formado em 2021 em torno doSegurAuto (Projeto e Desenvolvimento Integrado de Funções de Segurança Assistida ao Condutor e Ambiente para Veículos Autônomos). A equipe reúne pesquisadores da USP, da UTFPR (Universidade Tecnológica Federal do Paraná), da UnB (Universidade de Brasília), da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco e das empresas BMW, Stellantis (antiga Fiat Chrysler), Renault, Mercedes-Benz, Bosch, AVL, DAF Caminhões e Vector Informatik.
“O conceito de trabalho do SegurAuto é o desenvolvimento de sistemas avançados de auxílio a condução, que vão sendo incorporados gradativamente aos veículos até culminar com a autonomia plena”, explica o engenheiro mecânico Evandro Leonardo Silva Teixeira, do curso de engenharia automotiva da UnB. Alguns exemplos dessas inovações incorporadas pelas montadoras são o controle eletrônico de estabilidade do veículo, os sistemas automáticos de estacionamento e o controle de cruzeiro adaptativo, que permite definir a velocidade e a distância limite do carro da frente.
Sensores combinados
Uma das propostas em curso da equipe do SegurAuto é a combinação de dois tipos de sensores para fazer a leitura do ambiente no qual os veículos estão inseridos. No caso, radares, que usam ondas de rádio para captar a presença de elementos, e visão computacional, que utiliza câmeras de vídeo. Segundo Osório, coordenador do grupo da USP de São Carlos no SegurAuto, o radar, na maioria das situações, é capaz de detectar obstáculos inesperados. “Se alguém entrar na frente de um caminhão, o equipamento detecta prontamente e permite o acionamento imediato do comando para parar o veículo”, detalha. Porém, explica, ele nem sempre capta nuances e tem percepção apenas aproximada das características dos obstáculos.
A visão computacional é mais precisa. Além de identificar e detalhar os obstáculos e elementos próximos às vias, permite a leitura de placas de trânsito e enxerga faixas de pedestres e de rodagem. O problema é que situações adversas como neblina, chuva, poeira, faróis em direção contrária e luzes de veículos de emergência e segurança prejudicam a visibilidade das câmeras de vídeo.
Os carros da montadora norte-americana Tesla, que só utilizam sensores de visão computacional, são um exemplo das limitações do sistema. Já se envolveram em mais de uma dúzia de acidentes. Em vários, o sensor não foi capaz de distinguir luzes de emergência de veículos parados na pista, e o Tesla atropelou os socorristas.
“Nenhum sensor sozinho é totalmente eficiente. Por isso, a combinação de tecnologias deverá ser a melhor solução”, avalia Osório. Mesmo o mais eficaz dos sensores, segundo o pesquisador, o Lidar (Detecção de Luz e Medida de Distância), que emprega feixes de laser para medir a distância dos objetos e mapear o ambiente, é limitado pelo seu curto alcance, de 150 metros, o que exige uma composição com outros sensores.
Além disso, o Lidar exige mecanismos de elevada precisão e o apoio de unidades de processamento de alto desempenho, resultando em um custo operacional considerado proibitivo pela maioria das montadoras. A principal entusiasta da tecnologia na indústria de autônomos, a Waymo, do grupo norte-americano Alphabet, o mesmo controlador do Google, desistiu em 2021 de vender soluções Lidar para outras companhias e prepara uma nova geração mais eficiente e de menor custo.
A união de radares e a visão computacional propostas pela equipe do SegurAuto já demonstraram sua eficácia operacional, informa Osório, mas tem que melhorar o desempenho de cada um dos sensores. “É preciso enxergar mais longe e com maior antecedência”, destaca. Uma ultrapassagem a 80 km/h demanda antecipar situações que estão a 1 km de distância. “Um radar comum tem alcance de 300 metros, uma câmera de vídeo alcança uma distância maior, mas a informação obtida é imprecisa. É preciso alta capacidade de processamento de dados e há lentidão na obtenção de resultados”, descreve o pesquisador.
Detectar obstáculos distantes é apenas a primeira etapa do processo. É necessário ainda determinar a direção à qual o objeto identificado se move, a velocidade do movimento e prever se há ou não risco de colisão. Para isso, é preciso que os sistemas de inteligência artificial aprimorem sua capacidade de interpretar cenários.
O avanço das telecomunicações e da IoT (Internet das Coisas) pode contribuir para gerar segurança veicular. É possível, por exemplo, antecipar cenários de perigo, como dois carros chegando ao mesmo instante em um cruzamento onde o campo de visão é limitado. “A comunicação entre veículos ou entre veículos e celulares de pedestres, radares ou câmeras de segurança, pode gerar a informação de forma antecipada”, diz o cientista da computação Abel Guilhermino da Silva Filho, líder do Live (Laboratório de Inovação Veicular) do Centro de Informática da UFPE.
As redes de comunicação Vehicle to Everything (V2X) e Cellular Vehicle to Everything (C-V2X), ou seja, veículos conectados, que recebem e emitem sinais para outros carros, celulares de pedestres e infraestrutura urbana, como semáforos, radares, câmeras de segurança predial, são temas de pesquisa da UFPE no SegurAuto.
O grupo coordenado por Guilhermino fez um estudo de caso com base em um comboio, uma situação comum no transporte de cargas, em que as decisões do veículo que vai à frente do grupo – acelerar, frear, parar, alterar rota – são transmitidas aos demais. As informações antecipadas pelo líder proporcionam mais segurança operacional e economia de combustível ao comboio. Além disso, apenas o veículo que segue na dianteira precisaria ter a presença de um humano para intervir em situações de risco. “Estamos estabelecendo qual o melhor protocolo de comunicação, o tempo em que a comunicação interveicular deve ocorrer e o período necessário para uma reação segura”, detalha o pesquisador.
As equipes da UnB, liderada por Teixeira, e da Poli (Escola Politécnica) da USP, coordenada pelo físico João Francisco Justo Filho, têm a incumbência de desenvolver softwares capazes de converter as informações colhidas pelos sensores em decisão e ações efetivas nos veículos. Os pesquisadores da UnB se dedicam às soluções de controle e comando da direção e frenagem preditiva, enquanto os da Poli-USP trabalham com os sistemas de motores e freio.
Outro grupo de pesquisa nacional se organiza em torno do programa InSAC (Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Sistemas Autônomos Cooperativos), que tem suporte da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), e um histórico de contribuições desde 2009, quando era denominado INCT-SEC (Sistemas Embarcados Críticos).
O programa apoiou o projeto Carina (Carro Robótico Inteligente para Navegação Autônoma), o primeiro autônomo brasileiro a percorrer de forma assistida as ruas de uma cidade brasileira, no caso, São Carlos, em 2013, o primeiro caminhão autônomo da América Latina e a primeira máquina agrícola nacional . Todos os trabalhos foram desenvolvidos pelo grupo do Laboratório de Robótica Móvel do ICMC-USP. O Laboratório de Sistemas Inteligentes daEesc-USP (Escola de Engenharia de São Carlos da USP) colaborou no desenvolvimento do Carina e do caminhão autônomo.
Em 2019, uma equipe de seis alunos de pós-graduação do ICMC coordenada pelos professores Denis Wolf e Osório desenvolveu um veículo autônomo virtual e sagrou-se campeã do Desafio de Direção Autônoma Carla (Car Learning to Act), competição promovida pelas principais montadoras e desenvolvedoras de tecnologia de direção autônoma. A prova reuniu 69 equipes das mais prestigiadas instituições de ensino do mundo.
Uma contribuição recente no âmbito do InSAC é na área de visão computacional e foi realizada pela equipe do engenheiro mecânico Valdir Grassi Junior, do SEL (Departamento de Engenharia Elétrica e de Computação) da Eesc-USP. Trata-se do desenvolvimento de um método para a detecção de profundidade do ambiente a partir da imagem de uma única câmera embarcada no veículo. Ou seja, a partir de uma imagem, o software estima a distância dos objetos para o veículo. O resultado do trabalho foi publicado na revista Robotics and Autonomous Systems, em 2021.
“A exemplo dos humanos, a visão computacional tradicionalmente usa duas câmeras para determinar profundidade. Quando o humano perde a visão de um olho, o cérebro leva um tempo a se adaptar à percepção de profundidade monocular. Um veículo precisa seguir viagem com segurança se uma câmera falha. Daí a necessidade de criar algoritmos treinados para a situação”, justifica Grassi.
Coordenador do InSAC, o engenheiro eletricista Marco Henrique Terra, do SEL-Eesc, informa que estão em estágio avançado as negociações com uma montadora de caminhões para o desenvolvimento de um projeto de veículos pesados autônomos para operações em ambientes críticos nos setores agrícola e mineral. “Essas são duas grandes áreas de interesse por parte de multinacionais quando pensam em investir no Brasil”, diz Terra.
Em 2017, o projeto Iara (Intelligent Autonomous Robotic Automobile), do LCAD-Ufes (Laboratório de Computação de Alto Desempenho da Universidade Federal do Espírito Santo), atingiu um marco da pesquisa brasileira ao realizar uma viagem assistida de 74 km entre ocampus da Ufes, em Vitória, e o município vizinho de Guarapari. Uma parte dos envolvidos no projeto formou em 2019 a startup Lume Robotics. Há dois anos, ela lançou em parceria com a fabricante paranaense de veículos elétricos Hitech Electric o primeiro carro autônomo comercial do país. O e.coTech 4 usa sensores Lidar, câmeras de vídeo e GPS e está classificado no nível 4 de autonomia, ou seja, trafega sem motorista em áreas previamente mapeadas.

Veículo ‘e.coTech 4’, primeiro carro autônomo comercial do país
“Nossa expectativa é atender demandas de transporte corporativo, para a locomoção de pessoas, por exemplo, em grandes plantas industriais”, diz Rânik Guidolini, sócio-fundador da Lume. Um caminhão autônomo, também voltado para operar em sítios industriais, está previsto para entrar em testes ainda em 2022. “Estamos com cinco projetos-piloto programados. Esperamos fechar os primeiros contratos ainda este ano”, estima Guidolini.
Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.