Qual foi o impacto do ‘fique em casa’ na crise econômica atual
Marcelo Roubicek
11 de novembro de 2021(atualizado 28/12/2023 às 23h31)Bolsonaro associa inflação alta, retomada lenta e pobreza crescente às medidas de isolamento adotadas por governadores e prefeitos. O ‘Nexo’ ouviu economistas para entender o efeito real dessas políticas
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Mulher caminha por rua vazia no centro do Rio de Janeiro
Em uma entrevista a uma rádio do Espírito Santo na quarta-feira (10), Jair Bolsonaro voltou a culpar as medidas de restrição à circulação adotadas na pandemia por problemas econômicos do Brasil. Ao falar da alta no preço de alimentos, o presidente disse que, além do aumento no mercado internacional, “o preço está alto também em função do ‘fique em casa, a economia a gente vê depois’. Muito bonito… A consequência está aí”.
Bolsonaro vem repetindo argumentos similares ao longo de praticamente toda a pandemia, sempre mirando os governadores e prefeitos que adotaram medidas de restrição à economia. “As consequências do ‘fica em casa, a economia a gente vê depois’, já sabem quem é culpado? Quem não fechou nenhum botequim fui eu”, disse na quinta-feira (11). O raciocínio é replicado frequentemente por aliados e apoiadores.
Neste texto, o Nexo conversa com economistas para entender o impacto do “fique em casa” na economia brasileira na crise da pandemia. O entendimento é que, embora a redução da circulação tenha tido impactos sobre a economia, ela não explica problemas como inflação crescente, retomada lenta e pobreza alta em 2021.
Nos primeiros meses da pandemia, a inflação no Brasil desacelerou e ficou em baixa. Entre abril e agosto de 2020, inclusive, a variação de preços acumulada em doze meses permaneceu abaixo do piso da meta do Banco Central.
A partir do segundo semestre de 2020, os preços voltaram a subir com mais força. Num primeiro momento, os produtos que puxaram a aceleração da inflação foram os alimentos. A partir da virada para 2021, os combustíveis também começaram a pesar no bolso dos brasileiros, assim como a conta de luz , em função da crise hídrica que levou os reservatórios das hidrelétricas a níveis historicamente baixos.
Já no segundo semestre de 2020, Bolsonaro dizia que a alta de preços estava relacionada às medidas de isolamento social. “O pessoal tem reclamado do preço dos alimentos. Tem subido, sim, além do normal. A gente lamenta isso daí. Também é uma consequência do ‘fique em casa’ , quase quebraram a economia”, disse o presidente a apoiadores em novembro de 2020. Esse discurso segue presente em novembro de 2021.
Segundo Rafael Ribeiro, professor de economia do Cedeplar-UFMG (Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional da Universidade Federal de Minas Gerais), a paralisação de diferentes setores acabou levando a efeitos inflacionários pelo mundo no momento da retomada. “É fato que, em função da pandemia, uma série de cadeias produtivas tiveram paralisação. Como uma série de setores tiveram que parar, o que acontece é que com a retomada da economia, a demanda tem caminhado mais rapidamente que a oferta”, disse Ribeiro ao Nexo .
Mas o professor da UFMG diz que esse movimento global não pode simplesmente ser transposto para explicar o caso brasileiro: “de fato a dinâmica da pandemia afetou a oferta de maneira desproporcional, e a demanda tem recuperado de forma mais rápida que a oferta – e isso tende a gerar inflação. Mas quando trazemos essa narrativa para a economia doméstica, temos que nos perguntar: por que a inflação no Brasil tem sido maior que nos outros países?”.
A resposta, segundo Ribeiro, passa por “fatores que não estão diretamente associados à pandemia”. Ou seja, os principais motivos por trás da alta inflacionária no Brasil não estão relacionados ao “fique em casa” e às medidas de restrição à circulação impostas por prefeitos e governadores.
Entre eles, está a escassez de chuvas, que afetou a produção de energia elétrica e levou ao acionamento de fontes mais caras de geração de energia, como usinas termelétricas. A seca também impactou a produção de alimentos importantes como feijão e açúcar, reduzindo a oferta e levando a um aumento de preços.
O encarecimento dos alimentos também foi afetado pelo ciclo de alta das commodities – bens primários – no mercado internacional. O mesmo aconteceu com o petróleo , que também subiu no exterior. Seguindo a política de preços da Petrobras, os aumentos sucessivos do barril foram repassados aos combustíveis – por isso houve aumentos sucessivos na gasolina, no diesel e no gás de cozinha. Bolsonaro também tenta atribuir a alta dos combustíveis ao ICMS – importante imposto estadual – mas economistas refutam essa tese .
Para Ribeiro, o fator central da inflação brasileira em 2021 talvez seja a desvalorização do real frente ao dólar. Com a moeda americana mais cara, produtos e insumos importados também ficam mais caros. Também há um incentivo para que exportadores vendam para o mercado externo em dólar, reduzindo a oferta de bens no Brasil.
“Aí há um fator político. Temos que entender por que o real é uma das moedas que mais se desvalorizou no período. Essencialmente, isso aconteceu porque há um risco político muito grande no país hoje”, disse Ribeiro. “A incerteza política e incerteza com relação aos rumos da economia pressionam o câmbio e isso gera um aumento inflacionário”, afirmou o economista, mencionando os atritos do Executivo com Legislativo e Judiciário, e também “a saída desordenada da regra fiscal” com a manobra fura-teto articulada pela equipe de Jair Bolsonaro a partir do final de outubro.
Ou seja, a alta do dólar pode ser atribuída à atuação do poder público federal – e não a medidas tomadas pelos governos estaduais ou municipais.
No começo da pandemia, o PIB (Produto Interno Bruto) brasileiro teve forte queda. O PIB equivale à soma de todos os bens e serviços produzidos em um local em um determinado intervalo de tempo.
No segundo trimestre de 2020 – o primeiro totalmente inserido em um contexto de crise sanitária – a atividade econômica teve retração de 9% , a maior para um trimestre na série histórica do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), iniciada em 1996. Em relação a 2019, o PIB caiu 4,1% em 2020 ao todo.
Em 2021, a economia cresceu 1,2% no primeiro trimestre, mas voltou a registrar leve queda entre abril e junho, frustrando expectativas. No terceiro trimestre, alguns indicadores, como números do varejo e da produção industrial , indicam possibilidade de persistência da desaceleração econômica. O dado do PIB do terceiro trimestre será divulgado em 2 de dezembro.
Em 2020, desde o início da emergência sanitária, Bolsonaro atribuiu a crise econômica e a alta do desemprego a governadores e prefeitos que adotaram medidas de isolamento. Em 2021, não é diferente: no discurso à Assembleia Geral da ONU em setembro, o presidente brasileiro disse que a desaceleração econômica no segundo ano de pandemia seria resultado dessas políticas restritivas.
Virene Matesco, professora de economia da FGV-Rio (Fundação Getulio Vargas), afirmou ao Nexo que Bolsonaro faz uso de uma falsa contraposição entre a saúde e a economia em sua argumentação. “Se você não salvar vidas, não tem economia. Não existe funcionamento da economia sem pessoas. O ‘fique em casa’ significa proteger as pessoas. E não existe CNPJ sem CPF”, disse a economista.
Matesco também afirmou que, embora muitos locais tenham adotado medidas de restrição na pandemia, elas não foram implementadas em todo o país. Segundo a professora da FGV, “a pior coisa que fizemos foi o chamado lockdown parcial, porque ele não corta a contaminação”, ao mesmo tempo que traz prejuízos financeiros. Para a economista, isso ocorreu por falta de coordenação nacional desde o início da pandemia – que deveria ter sido conduzida pelo presidente.
Ribeiro, da UFMG, também afirmou que, na literatura econômica, estudos mostram que “as economias que fizeram medidas mais restritivas conseguiram proteger a força de trabalho e reduzir o contágio. E quando o governo consegue controlar melhor a pandemia, ele consegue passar mais segurança para os agentes – então as empresas sentiram mais segurança para retomar planos de investimento”. Ou seja, no entendimento do economista, um lockdown mais forte poderia ter ajudado a levar a uma retomada mais robusta da atividade.
Apesar do descontrole da pandemia no país, a queda do PIB brasileiro em 2020 não esteve entre as piores do mundo , na comparação com outros países. A professora da FGV atribui isso ao alto nível de gasto público promovido no Brasil. Economistas apontam amplamente que o auxílio emergencial articulado pelo Congresso – principal política pública adotada na pandemia – foi responsável por amenizar o tombo da atividade no primeiro ano da crise sanitária.
Em 2021, a retomada mais lenta que o esperado ocorre mesmo com o avanço da vacinação. Matesco disse ao Nexo que isso não é resultado das políticas de isolamento. “É claro que estádios, teatros, cinemas e shows foram afetados [por medidas restritivas]. Mas não houve um ‘fique em casa’ tão forte [quanto em 2020]. E há também falta de demanda por certos serviços , o que não é culpa dos governadores”.
A professora da FGV afirmou que “a economia está desacelerando por questões estruturais”, que envolvem falta de investimento público em áreas como educação e saneamento, e também problemas na área fiscal e no controle das contas públicas.
A pandemia expôs a vulnerabilidade do trabalho informal e a fragilidade do mercado de trabalho. Nos primeiros seis meses de crise sanitária, 12 milhões de brasileiros perderam o emprego. Entre eles, seis a cada dez eram trabalhadores informais. A desigualdade de renda do trabalho no Brasil cresceu fortemente em 2020.
A pobreza, contraintuitivamente, caiu a níveis historicamente baixos – algo temporário, que durou apenas até o fim de 2020. Isso aconteceu por causa do auxílio emergencial , articulado pelo Congresso Nacional em março de 2020.
Entre abril e agosto de 2020, o benefício de R$ 600 mensais chegou diretamente a cerca de 68 milhões de brasileiros. A partir de setembro, as parcelas caíram para R$ 300.
Em 2021, após três meses de hiato, o auxílio foi retomado a partir de abril com valores e alcance reduzidos. O programa foi encerrado na virada de outubro para novembro.
A partir de 17 de novembro, o governo começará a pagar o Auxílio Brasil, que inicialmente terá valor médio de cerca de R$ 217 a 14,6 milhões de famílias. A ideia é que a partir de dezembro, o benefício pague R$ 400 a 17 milhões de famílias. Além de suceder o auxílio emergencial, o Auxílio Brasil também irá substituir o Bolsa Família , programa de transferência de renda que marcou os governos petistas de Luiz Inácio Lula da Silva (2003 a 2010) e Dilma Rousseff (2011 a 2016).
O contexto de implementação do Auxílio Brasil, é de alta da fome no Brasil. Além disso, o país registra cenas mais frequentes de miséria. Alguns exemplos são a fila para obter ossos e restos de carne, e famílias cozinhando com lenha por não conseguirem pagar pelo botijão de gás.
19 milhões
era o número de brasileiros passando fome no fim de 2020, segundo dados da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional
Na quarta-feira (10), Bolsonaro disse nas redes sociais que as medidas de isolamento adotadas por governos locais levaram à necessidade de implementação de um auxílio para os mais vulneráveis. Implicitamente, portanto, ele culpou governadores e prefeitos pela pobreza em 2021.
- Com os resultados do “fique em casa que a economia a gente vê depois” aplicado por muitos governadores e prefeitos, faz-se urgente auxílio aos mais necessitados.
— Jair M. Bolsonaro (@jairbolsonaro) November 10, 2021
-Editado decreto que regulamenta o Auxílio Brasil, substituindo o Bolsa Família e trazendo ampliação em seu escopo.
Os economistas ouvidos pelo Nexo rejeitaram a ideia de que a pobreza em 2021 esteja relacionada com as políticas restritivas dos governos locais.
Ribeiro disse que a virada de 2020 para 2021 foi o momento em que a pobreza voltou a aumentar com força no Brasil. Isso porque a partir de 1° de janeiro, o auxílio emergencial foi encerrado . Quando foi retomado, em abril, tinha alcance menor e pagava parcelas mais baixas.
O economista atribui essa escalada da pobreza à atuação do próprio governo federal. “A pobreza aumentou [em 2021], mas não precisaria ter aumentado. Se desde o ano passado [2020] já tivesse sido previsto um auxílio para este ano [2021], sem descontinuidade do auxílio emergencial, as pessoas não precisariam ter entrado na pobreza”, disse ao Nexo . Ainda segundo Ribeiro: “isso não tem a ver com o ‘fique em casa’. Isso tem a ver com o mal planejamento do orçamento público [federal] para a pandemia”.
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