Como a pandemia mudou a relação de empresas com estoques
Marcelo Roubicek
31 de janeiro de 2022(atualizado 28/12/2023 às 22h19)Prática de manter poucos produtos armazenados para ganhos de eficiência se disseminou pelo mundo na segunda metade do século 20, mas ficou exposta em meio à crise sanitária global
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Homem trabalha em armazém em Roterdã, nos Países Baixos
A pandemia de covid-19 levou a disrupções nas cadeias globais de produção. Com problemas logísticos e produtos em falta , os preços aumentaram no mundo todo, inclusive no Brasil.
Parte desse problema foi causada pelos níveis baixos de estoques , que deram pouca margem de manobra para as empresas enfrentarem a crise. A prática de manter poucos produtos guardados estava amplamente disseminada antes da crise sanitária e está associada ao modelo de produção “just in time”, desenvolvido no Japão e disseminado no mundo todo na segunda metade do século 20.
Neste texto, o Nexo explica o que é o “just in time” e como o modelo ficou exposto pela crise global da pandemia. Em resposta, os estoques baixos estão sendo repensados em meio aos problemas globais de oferta.
O sistema “ just in time ” surgiu no Japão após a Segunda Guerra Mundial, e se consolidou no país nos anos 1970. O modo de operação é comumente associado à Toyota, montadora japonesa que foi pioneira do modelo.
A expressão “just in time” pode ser traduzida como “bem na hora”. O sistema é baseado em aumento da eficiência e redução de custos. A produção é conduzida da maneira mais enxuta possível, evitando desperdício de tempo, espaço, materiais, trabalho e dinheiro.
Isso significa seguir cronogramas rígidos de entrega e produção, mantendo contratos de curto prazo com fornecedores para poder se adaptar rapidamente a mudanças na demanda.
Outra marca são os estoques mantidos em níveis baixos, o que reduz custos com armazenamento e evita situações em que não se usa algo por que já se pagou. No Japão dos anos 1970 – um país com pouca extensão territorial e uma indústria em expansão –, essa era uma vantagem significativa.
O “just in time” se difundiu pelo mundo a partir dos anos 1980 e se tornou dominante nas cadeias industriais de produção. Desde então, o mundo se acostumou a funcionar com estoques baixos.
A chegada da pandemia no começo de 2020 levou à paralisação parcial da economia global. Em muitos países, medidas de lockdown e quarentena foram tomadas.
No Brasil, essas medidas não aconteceram em escala nacional, por resistência do governo de Jair Bolsonaro. Mas, em nível local, governadores e prefeitos adotaram políticas de restrição da circulação.
Fábricas ao redor do mundo tiveram que operar de maneira reduzida. Comércios precisaram passar períodos fechados ou funcionando de forma restrita. O transporte de bens ficou prejudicado e, consequentemente, mais caro.
A demanda também foi abalada. Com o desemprego em alta e a maior incerteza sobre os rumos da economia, o consumo caiu. Além disso, o padrão de consumo mudou de perfil: com as pessoas ficando mais em casa, os gastos com bens ganharam espaço frente aos gastos com serviços. Enquanto o restante da economia sofria, crescia a procura por produtos ligados à vida caseira, como computadores, jogos eletrônicos, bicicletas ergométricas e alguns alimentos.
Passado o choque inicial da chegada da pandemia, as economias pelo mundo foram se recuperando, seja por causa da reabertura gradual ou por causa de grandes estímulos promovidos pelos governos de diferentes países. A demanda voltou a crescer em ritmo rápido. E a oferta não conseguiu acompanhar, em parte por causa dos estoques.
O choque afetou o “just in time”, modelo baseado justamente em cronogramas rígidos e estoques baixos. Com a produção e a logística afetadas pela paralisação parcial da economia e pela recuperação rápida da demanda, o sistema ficou comprometido: não era possível garantir entregas nem recorrer a produtos e insumos armazenados.
Em um modelo com baixa margem de erro – por causa dos estoques baixos –, isso desencadeou um efeito dominó.
As cadeias globais de produção não conseguiram acompanhar o aquecimento da economia mundial. Esse desequilíbrio começou a se traduzir em escassez de produtos , incluindo alguns insumos importantes para as cadeias globais de produção.
Um dos produtos centrais que ficou em falta são os chips eletrônicos , que são usados em carros, computadores, celulares e outros produtos. Com o produto em falta, os preços dos chips aumentaram. E os bens que contém chips também subiram. Ou seja, a escassez de chips levou a uma limitação na produção de carros, computadores e outros eletrônicos, que ficaram mais caros. Outros bens importantes que registraram – e ainda registram – escassez na pandemia são aço, madeira, plásticos e tintas .
A falta de produtos – aliada à persistência de dificuldades logísticas, como escassez de contêineres e fretes mais caros – se traduziu em aumento da inflação .
Prateleiras quase vazias em supermercado no Reino Unido
Em 2021, diferentes países registraram aceleração dos preços – incluindo os EUA , que atingiram a maior inflação desde 1982 . No Brasil, o aumento de preços ficou acima de 10% pela primeira vez desde 2015, movido por combustíveis, conta de luz e alguns alimentos como café e açúcar.
Embora a pandemia não tenha acabado e seus choques não tenham se dissipado totalmente, empresas e economistas já discutem o futuro do “just in time” e dos estoques.
Na indústria automobilística, por exemplo, empresas se mobilizam para aumentar estoques de determinados componentes e insumos. É o caso de firmas como Volkswagen, Nissan, Tesla e a própria Toyota, empresa símbolo da disseminação do “just in time” na segunda metade do século 20.
As estratégias vão desde aumento de estoques de chips e outros componentes cruciais até contratos mais longos com fornecedores para garantir materiais importantes. No caso da Tesla, há um esforço para aumentar e garantir o acesso a bens minerais essenciais para a produção de baterias de carros elétricos, como níquel e lítio.
Essas mudanças não se limitam ao mundo dos automóveis. Diferentes mercados têm adotado cada vez mais o “ just in case ” – que pode ser traduzido que “para o caso de” –, em que se aumentam estoques “para o caso de” novas disrupções que atinjam a cadeia de produção.
Segundo o jornal americano Wall Street Journal, os estoques das 500 maiores empresas listadas na bolsa de Nova York estavam 15% mais altos no segundo trimestre de 2021 que no mesmo período de 2019. No Brasil, a indústria também vem aumentando estoques de materiais , conforme mostrou reportagem do jornal Folha de S.Paulo publicada em 23 de janeiro de 2022.
Esse movimento não significa necessariamente uma revisão geral do “just in time” enquanto modelo de organização da produção. Isso porque o sistema continua sendo eficiente em termos de redução de custos e desperdícios. É possível que empresas adotem apenas uma variação do “just in time”, com estoques mais altos e contratos mais longos para dar maior margem de segurança à produção.
Além disso, o aumento de estoques leva, em muitos casos, a um aumento dos custos de armazenamento, o que significa também aumento de preços . Portanto, mesmo que elevar estoques seja uma forma de se blindar das disrupções globais de oferta, o consumidor também pode sentir esse movimento no bolso.
Há economistas que argumentam que a elevação de estoques pode ser um fenômeno temporário , ligado à superação das disrupções causadas pela pandemia. Em entrevista ao jornal americano The New York Times, o economista Willy C. Shih, professor da Universidade de Harvard, afirmou: “Vamos parar de perseguir custo baixo como único critério de avaliar negócios? Sou cético com relação a isso. Consumidores não vão pagar por resiliência [das cadeias de produção] quando não estão em crise”.
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