Expresso

Por que não dá para separar as diferentes crises ambientais 

Mariana Vick

25 de dezembro de 2024(atualizado 25/12/2024 às 21h02)

Órgão científico global mostra interconexões entre desafios de biodiversidade, água, alimentos, saúde e mudança climática. Relatórios propõem mudanças profundas para mudar cenário

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FOTO: Smaack/Wikimedia Commons - 25.mai.2016Pessoas jovens e brancas estão ajoelhadas, colhendo hortaliças no campo.

Fazenda de agricultura orgânica na Alemanha

As crises globais de biodiversidade, água, alimentos, saúde e mudança  climática estão todas interconectadas. Elas interagem entre si e se reforçam mutuamente — e, para enfrentá-las, é preciso tratá-las em conjunto. Essas são as principais mensagens de dois relatórios lançados na terça (17) e quarta-feira (18) pela IPBES (Plataforma Intergovernamental de Política Científica sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos), um dos maiores órgãos científicos do mundo.

Preparados durante três anos por dezenas de especialistas de todas as regiões do mundo, os estudos baseiam-se em milhares de evidências científicas sobre biodiversidade, água, alimentos e saúde no contexto da mudança climática. Além de mostrarem as interligações entre essas crises, eles apresentam propostas para enfrentá-las em conjunto. Também falam sobre os custos da inação ou de abordar esses problemas de forma isolada.

Neste texto, o Nexo explica o que une as cinco diferentes crises tratadas nos estudos, quais são as evidências reunidas até agora e quais são os prejuízos de tratá-las separadamente. Mostra também  como os relatórios foram feitos e quais medidas a IPBES propõe para enfrentar esses problemas. 

O que une as diferentes crises

A publicação lançada pela IPBES na terça (17), chamada informalmente de “Avaliação Nexus”, afirma que a biodiversidade — ou seja, a variedade da vida na terra — está em declínio. O cenário tem tido impactos sobre a segurança alimentar, a qualidade e disponibilidade de água, a saúde e a resiliência das sociedades à mudança climática. Esse é um dos exemplos das conexões (ou nexos) entre as cinco crises atuais analisadas no relatório.

A perda de biodiversidade tanto influencia quanto é influenciada pela mudança climática, por exemplo. Da mesma forma, a disponibilidade de água influencia e é influenciada pela crise de insegurança alimentar. O texto descreve diferentes formas pelas quais biodiversidade, água, alimentos, saúde e mudança climática podem interagir entre si: 

  • interligação: as influências e interações entre múltiplos elementos num sistema
  • interdependência: um ou mais elementos de um sistema dependem de outros para funcionar
  • efeito cascata: quando agir sobre um elemento resulta numa cadeia de impactos negativos sobre outros
  • efeito composto: quando mudanças em um ou mais elementos exacerbam impactos negativos sobre outros
  • feedbacks: mudanças nas interligações entre elementos que reforçam ou equilibram a mudança inicial
  • sinergia: melhorias em um elemento levam a melhorias em outro
  • trade-off: melhorias em um elemento levam a pioras em outro 

Diversas tendências globais nos últimos 50 anos intensificaram os fatores que levam à perda de biodiversidade e causaram resultados negativos para a qualidade de água, a segurança alimentar, a saúde e o clima, segundo o estudo. Estão entre eles a poluição, a superexploração de espécies e mudanças no mar e no uso da terra. Por trás desses fatores, há ainda as causas indiretas das atuais crises ambientais, como o consumo excessivo, o desperdício e a concentração desigual de riqueza.

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O estudo destaca que a mudança climática tem tido interações cada vez mais crescentes com os outros integrantes do nexo (nome que o estudo dá para o conjunto de elementos interligados). Apesar disso, essas conexões ainda são negligenciadas nas políticas públicas. Tanto os impactos da mudança climática quanto as ações de mitigação e adaptação à crise têm influenciado a perda de biodiversidade, a água, a saúde e a segurança alimentar, segundo o texto.

Quais os problemas de tratá-las separadamente

Apesar de essas crises serem tratadas de forma separada nas políticas públicas e em fóruns como as conferências da ONU — há uma COP sobre clima e outra sobre biodiversidade, por exemplo —, essa forma de encará-las é ineficaz e contraprodutiva, segundo o estudo. Quando olhamos para esses problemas de forma isolada, não conseguimos entender suas interligações e sua complexidade. A publicação recomenda tratá-los de forma integrada.

“Os esforços dos governos e de outras partes interessadas muitas vezes falharam […] porque eles permanecem fragmentados, com muitas instituições trabalhando de forma isolada — o que frequentemente resulta em objetivos conflitantes, ineficiências e incentivos negativos, levando prejuízos não intencionais” 

Paula Harrison

professora no Centro de Ecologia e Hidrologia do Reino Unido e copresidente do relatório lançado na terça-feira (17) pela IPBES 

Paula Harrison, professora no Centro de Ecologia e Hidrologia do Reino Unido e copresidente do relatório lançado na terça (17), usou o exemplo da esquistossomose para falar da importância de soluções integradas. Tratada apenas como um problema de saúde — ou seja, apenas por medicamentos —, a doença se perpetua, já que a tendência é que as pessoas continuem a se infectar, segundo ela. Mas um projeto no Senegal adotou uma abordagem diferente: reduzindo a poluição da água e removendo plantas invasoras para reduzir o habitat dos caracóis em que hospedam os vermes que transmitem a doença, a iniciativa reduziu em 32% nas infecções em crianças, além de ter melhorado o acesso à água doce.

O estudo defende a chamada “abordagem nexus” para o enfrentamento das atuais crises ambientais. Essa nova abordagem reconhece que os desafios de biodiversidade, clima, água, alimentos e saúde estão interconectados entre si em várias escalas no tempo e no espaço. Melhorando a compreensão dessas interconexões, é possível criar políticas públicas mais sinérgicas, coordenadas e coerentes com as metas globais de sustentabilidade, segundo o texto.

Quais as propostas contra as crises

Lançado na quarta-feira (18), o relatório “Transformative Change Report” da IPBES afirma que apenas mudanças transformadoras serão capazes de enfrentar o conjunto de crises que a humanidade vive. O texto propõe transformações “profundas e fundamentais” na forma como as pessoas interagem com o mundo natural. As medidas propostas incluem:

  • conservar, restaurar e regenerar habitats importantes para a diversidade biológica e cultural
  • impulsionar mudanças sistemáticas em setores responsáveis pela crise de biodiversidade, como a agropecuária, a pesca, a silvicultura e a mineração
  • transformar os sistemas econômicos pela natureza e equidade
  • transformar os sistemas de governança para que sejam inclusivos e adaptáveis
  • transformar visões e valores para reconhecer a interconexão entre a humanidade e a natureza

A publicação chama de mudanças transformadoras aquelas que mudam tanto as visões (maneiras de pensar, saber e ver) quanto as estruturas (maneiras de organizar, regular e governar) e as práticas (maneiras de fazer) da humanidade em relação à natureza. Para os autores, os modos de vida atuais reforçam as causas da perda de biodiversidade, em vez de enfrentá-las. Transformá-los é fundamental para cumprir os compromissos globais por um mundo mais sustentável.

“Mudanças transformadoras são necessárias porque a maioria das abordagens anteriores e atuais para a conservação — que visam a reformar em vez de transformar os sistemas — não conseguiram deter ou reverter o declínio da natureza ao redor do mundo, o que tem sérias repercussões para a economia global e o bem-estar humano”

Karen O’Brien

professora na Universidade de Oslo, na Noruega, e integrante da equipe que escreveu o relatório 

O estudo afirma que essas ações devem ser adotadas imediatamente. O custo de atrasar essas medidas por até uma década será o dobro do que teremos se agirmos agora, segundo o texto. Agir rapidamente também pode gerar oportunidades de negócio e inovação nos próximos anos, segundo o estudo. 

US$ 10 trilhões

em oportunidades de negócios poderiam ser gerados até 2030

395 milhões

de empregos poderiam ser mantidos até a mesma data

“Por mais complexo e desafiador que seja abordar as causas subjacentes da perda de biodiversidade, isso é possível”, disse Lucas Garibaldi, professor na Universidade Nacional de Rio Negro, na Argentina, em declaração à imprensa. “A história nos mostrou que as sociedades podem se transformar em imensa escala – como fizeram na Revolução Industrial. Embora essa era tenha causado terríveis custos ambientais e humanos, ela serve como prova de que uma mudança fundamental em todo o sistema é alcançável.”

Como os estudos foram feitos

Aprovada na segunda (16) na 11ª sessão plenária da IPBES, formada por representantes de 147 governos que fazem parte da plataforma, a “Avaliação Nexus” é resultado do trabalho de 165 pesquisadores de 57 países. Já o “Transformative Change Report” foi elaborado por 100 especialistas de 42 países. Ambos os estudos tiveram três anos de duração.

US$ 1,5 milhão

foi o custo para fazer os relatórios 

As publicações baseiam-se em milhares de referências — 6.500 para a “Avaliação Nexus”, 7.000 para o “Transformative Change Report” — que capturam a diversidade de evidências sobre biodiversidade, água, alimentos e saúde e mudança climática. As fontes incluem tanto artigos científicos quanto relatórios governamentais. Também foram considerados conhecimentos indígenas e locais sobre os temas.

A IPBES é um órgão global de política científica encarregado de fornecer as melhores evidências disponíveis sobre biodiversidade aos tomadores de decisão. Ela é muitas vezes descrita como o “IPCC para a Biodiversidade”, em referência ao órgão da ONU que reúne evidências científicas sobre a mudança climática. A plataforma tem um braço brasileiro, a BPBES (Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos), um dos parceiros do Nexo Políticas Públicas.

Os estudos lançados na terça (17) e quarta (18) buscam apoiar a realização dos objetivos do desenvolvimento sustentável, do Marco da Biodiversidade Global de Kunming-Montreal — aprovado na COP15 de biodiversidade, em 2022 — e do Acordo de Paris para o clima. São voltados para atores como governos, sociedade civil, povos indígenas e comunidades locais e o setor privado. O objetivo é que as decisões desses atores sejam subsidiadas pelas melhores informações disponíveis. 

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